sábado, 18 de janeiro de 2014

CRÔNICA DE UM ESTÁGIÁRIO MACUMBEIRO II


Marafo.
3
Então eu finalmente coloquei a roupa branca e decidi entrar de vez nessa história de Umbanda. Afinal, o chá de sal grosso que me mandaram tomar antes das giras já não estava mais tão assim intragável, mesmo que ainda fizesse um efeito “descarrego” no meu estômago. Perguntei a mais gente se eles usavam sal grosso pra descarrego e me disseram que sim, então deve ser normal mesmo…

Bom, voltando ao terreiro. Quando finalmente tomei a decisão de fazer parte da corrente, uma primeira dúvida me surgiu: e os colares? Perguntei pro pai de santo da casa e ele me falou que, antes de tudo, eu tinha que fazer o anjo da guarda, que correspondia a um colar branquinho e bem simples que todas e todos tinham.
Ele me instruiu a comprar um quartinho, uma vela de sete dias e umas continhas pra fazer o colar (o nome certo é guia, me falaram…). Depois de tirar todas as minhas coisas de um dos dois quartinhos que eu tenho aqui em casa pra deixar ele pro anjo dormir, fui procurar em vários umbandários a vela e as continhas, e descobri que “quartinho” era tipo um potinho onde a gente ia colocar alguma coisa pro anjo beber… Aff. Que burro. Mas tudo bem, e sem preconceitos com a bebida do anjo gente! Afinal, se Jesus bebia vinho, anjo da guarda também tem direito a uma folguinha!!!
Fiz a guia, que levou só 5 horas pra ficar pronta (coordenação motora fina = 0), comprei a vela grandona e então percebi que faltava algo… Que que um anjo bebe meu Deus?! Fiquei preocupado porque faltava só duas horas para a gira e eu ainda ia ter de tomar um banho de ervas e o chá activia de sal grosso… Mas, tranquilo. Peguei o telefone e liguei pro meu 0800-macumba, ou seja, o telefone de um amigão meu do terreiro e perguntei: “cara, que que meu guardião bebe?”. Ao que ele me respondeu que, possivelmente, algum “Marafo”, e desligou, já que as pessoas tem mais o que fazer do que ficar tirando dúvida de última hora de estagiário.
Como o mercado é perto, eu fui voando pra lá. Marafo, marafo… Procurei na seção de bebidas e não encontrei nada com esse nome. Perguntei pra uma atendente de cabelo compridão e saia e ela só disse que “o sangue de Jesus tem mais poder”! Certamente que tem moça, eu respondi, mas ainda preciso de um tal de “Marafo”…
Tava quase desistindo quando, numa inspiração divina, resolvi ligar novamente pro meu amigo. “Irmão, tá difícil arranjar o tal de Marafo… Que mais que eu posso levar pro meu anjo guardião?”. Ele riu e disse “é, não é bem um anjo, mas não é do mal também… Leva um pito então…” e desligou novamente. Obrigado TIM por esse sinal maravilhoso. Se as incorporações dependessem de você, certamente que a entidade ia baixar, falar uns 20 segundos, dar umas falhadas e dizer “a entidade chamada encontra-se ocupada ou fora da área de vibração”…
Voltei ao mercado… Pito… pitu… Perguntei à mocinha da saiona de vicolycra se ela tinha esse tal de “pito” então, e que era pra já, porque meu guardião precisava de algo pra beber… Não vou repetir a pregação que ganhei quando disse isso, mas só sei que, enquanto ela gritava, meu olho caiu numa garrafa: PITU. É isso!!! Pitú! Como eu sou burro, pensei, nem fui procurar direito o negócio… que falta de fé!
Peguei a garrafa todo feliz e fui pro terreiro. Quando cheguei lá, coloquei ela do meu lado dentro da gira. O pessoal achou estranho, mas eu explicava que era pro meu anjo. Uma irmã riu e disse “nossa, que nome carinhoso pro seu exú!”… Hahahaha, que besta, ela nem sabe que Pitu é a bebida dos anjos mas, enfim, não vou julgar, estamos todos aqui apra aprender…
Quando foi a hora, o preto velho baixou no terreiro. Ele nos chamou pra ficar pertinho dele e, um a um, foi acendendo nossas velinhas, baforando um charudo nas guias, e fazendo um montão de salamaleques muito legais que eu não entendi, mas amei.
Então ele disse “fios, ceis trouxero as quartinha de oceis pro preto enche?”. Eu peguei minha quartinha e minha Pitu, todo orgulhoso. E então percebi que NINGUÉM tinha trazido bebida pro seu anjo. Que descaso! As pessoas às vezes se esquecem de quem faz tanto pela gente só porque não vemos eles trabalhando… Paciência né? O anjo deve estar acostumado.

Quando eu vi que o preto velho pegou da jarrinha de água dele pra encher eu disse “não precisa meu pai, eu trouxe a minha!”, e completei a garrafinha de porcelana com minha Pitu. O silêncio foi geral. O ogã engasgou. A mãe pequena teve uma crise de risos e teve de ser levada pra fora. Crianças choravam, médiuns chacoalhavam a cabeça em reprovação.
Eu sei o que você estão pensando: poxa, como você teve a ousadia de trazer uma garrafa de casa ao invés de dar ela pro terreiro e deixar todo mundo usar? Bom, só digo em minha defesa que eu não sabia dessa possibilidade, e que achei que, como era pro meu anjo, era pra ser a garrafa dele porque, sei lá né, vai que tem que trocar todo dia e eu é que não vou ficar comprando cachaça no mercado depois do esporro que levei da moça do cabelão!
Enfim, o preto velho ficou calado. De repente, ele JOGOU MINHA PINGA NO CHÃO, pediu pra que eu lavasse o quartinho (que, se eu fosse um pouco mais besta, ia achar que era pra lavar o quartinho dos materais de trabalho como castigo pela minha insolência) e completou com a água dele, ainda me dando de presente uma pedrinha.
Ninguém falou comigo depois da gira. As pessoas me olhavam com cara de quem te viu oferecendo cigarro pra Erê (eu já vi erê fumando gente! Eram uns erês mais mau-encarados e piadistas, mas eles fumavam!!!) e eu fui pra casa, com minha Pitu embaixo de um braço e o quartinho no outro… Mas fui feliz! Afinal, meu anjo tinha sua garrafinha lá e, se ele quisesse, era só me pedir. No fim das contas, acho que vou doar a garrafa pro terreiro e ficar só com a aguinha mesmo… É mais barato e não me sujeita a ser exorcizado a cada passada que eu der no mercado!
É isso pessoal. Agora tenho de colocar as coisas de volta no meu quartinho…hahahaha!
Saravumba!

Nenhum comentário:

Postar um comentário