quarta-feira, 11 de abril de 2012

COMO CONHECI ZÉLIO DE MORAIS


"Para mim, ele, sem dúvida nenhuma, é o Pai da Umbanda."
                                                                                  (Ronaldo Linhares)

          Em julho de 1970, eu estava numa das minhas viagens ao Rio de Janeiro, com fragmentos de uma informação que havia colhido de uma conversa com o Sr. Demétrios Domingues, segundo o qual a mais antiga Tenda de Umbanda seria a de Zélio de Morais.  Eu me encontrava em São João do Meriti-RJ, já de saída para São Paulo, quando decidi que procuraria essa pessoa e se é que ela realmente ainda existia.  Após me informar de como chegar a Cachoeiras de Macacu, atravessei a ponte Rio-Niterói e, tomando a estrada para Friburgo, consegui chegar, depois de várias informações erradas.


          Caída à tarde naquela cidade.  

          Era dia de jogo do Brasil na copa do mundo, o que serviu para complicar meu trabalho.  Em todo local que pedia informações, todos estavam com olhos grudados na televisão.  Meu carro, embora novo, tinha um mau contato no rádio e a minha companheira Norminha passou metade da viagem dando tapas embaixo do painel, para ouvir o jogo.  Várias vezes ela me disse que aquilo era uma loucura e que o melhor era voltarmos ao Rio de Janeiro, mas eu estava determinado a esclarecer o assunto de uma vez por todas.  Ao
entrar na cidade, que é muito pequena, dirigi-me primeiro a um bar, pedindo as primeiras informações, pois contava encontrar uma pessoa muito popular na cidade.  Fiquei muito surpreso com o fato de que ninguém soube dar-me nenhuma informação, nem quanto à figura de Zélio nem quanto à sua Tenda.

          Essa pessoa que eu procurava, se ainda estivesse viva, devia ser um ancião e, assim pensando, procurei uma farmácia, pois nessas pequenas comunidades os velhos quase sempre freqüentam regularmente a farmácia.  Nova decepção: ninguém conhecia Zélio e nem havia ouvido falar de sua Tenda.

          Cheguei a procurar a Igreja local e indaguei ao padre, apresentando as minhas credenciais de repórter.  Este também declarou nada saber a respeito de quem eu procurava (mais tarde vim a saber que a família Morais não era conhecida do padre, como participava financeiramente das realizações sociais da igreja).

          Já quase desistindo, parei numa padaria, em uma das travessas da cidade, e foi lá que encontrei o "louco".  Demo-lhe este nome porque durante a nossa conversa ele pareceu não ser um indivíduo equilibrado.  Afirmou conhecer Zélio e disse-me que ele tinha um bar em Boca do Mato.  Contestei imediatamente, pois as informações que eu tinha diziam que Zélio morava em Cachoeiras.

          Depois de muitas explicações, fiquei sabendo que Boca do Mato era um bairro desse micromunicípio, com praticamente uma única rua que terminava na mata, daí o nome que lhe deram: Boca do Mato.  Um tanto temeroso ainda, convidei o "louco" para que nos levasse até o local.

          Norminha estava apavorada com a minha atitude, achando que estávamos sendo conduzidos a uma emboscada.  O cair da tarde era frio e garoava muito, lembrando uma tarde de inverno paulistano.  A região serrana talvez propiciasse esse clima.  Ao voltarmos à estrada, o "louco" apontava para a propriedade mais bonita e dizia: "Eu vendi para o deputado, para o gerente do Banco do Brasil, etc".  Se era fato ou não, o certo é que jamais ficaremos sabendo. Finalmente uma curva na estrada, nenhuma casa aparente, ele nos pede para entrarmos à direita.  Só a menos de dez metros da entrada é que eu consegui enxergar a saída.

          O receio transformou-se em medo.  Apesar de tudo, fomos em frente: uma rua sinuosa, várias pontes, algumas casas esparsas, nenhuma casa de comércio aberta.  Paramos e ele disse: "É aqui!".   A casa estava fechada.  Bati palmas várias vezes; numa casa vizinha uma janela se abriu e uma senhora de meia-idade, muito atenciosa, perguntou: "Vocês estão procurando quem?" Mostrei-lhe as credenciais e expliquei tudo.  "Sou repórter e preciso encontrar Zélio".  Ela então me esclarece: "Seu Zélio está muito
doente e não há ninguém em casa".

          Finalmente alguém confirmou que Sr. Zélio existia.  Perguntei onde o encontrava e ela disse: "Ele está na casa da filha, em Niterói". Senti como se tivesse pisado num alçapão, pois havia passado por Niterói e levei duas horas para chegar até ali.  Teria de fazer todo o caminho de volta.  Perguntei se ela teria o endereço.  Ela, muito educada, respondeu: "Não sei exatamente onde eles moram, mas tenho o telefone da filha".

          Depois de assegurar-me de que realmente o apartamento ficava em Niterói, despedi-me.  O "louco" estava eufórico, a informação era correta.  Paramos em Cachoeiras de Macacu e eu o gratifiquei.  Ele agradeceu e saiu correndo com o dinheiro em direção ao primeiro bar, "como um louco".

          Voltei para Niterói.

          Norminha dizia que o louco era eu por continuar naquela busca inútil, mas me acompanhava, apesar de tudo.  Já não se falava mais em futebol, somente se encontraríamos ou não o Sr. Zélio.

          Chegamos em Niterói por volta das 19 horas.  Assim que deixei estrada, cruzei algumas ruas e cheguei a uma farmácia. "Cariocamente", estacionei o carro na calçada, desci, apresentei minhas credenciais e pedi para usar o telefone.  Logo, em minha volta estava estabelecida a confusão.  "O senhor é repórter? Foi crime? Onde foi? Quem morreu?" Tentando ignorar as perguntas, consegui completar a ligação.  Do outro lado da linha uma voz de menina atendeu-me.  Eu disse apenas que era de São Paulo, que queria entrevistar o Sr. Zélio e que havia sido informado de que ele se encontrava naquele telefone.

          A mocinha pediu-me que esperasse um instante.  Eu a ouvi transmitindo as informações que lhe dera.  Outra voz no aparelho, desta vez a de uma senhora; explico os objetivos da minha visita (em nenhum momento declinei meu nome).

          Ouço a pessoa com quem estou conversando dirigir-se a outra e explicar: "Papai, há um senhor de São Paulo ao telefone, que  veio entrevistá-lo.  O senhor pode atendê-lo?" E, para minha surpresa, ouço lá no fundo uma voz cansada responder:

          "É Ronaldo, minha filha, que estou esperando há muito tempo.  O homem que vai tornar o meu trabalho conhecido em todo o mundo". Eu ouvia e não acreditava.  Eu não havia dito a ninguém o meu nome e, no entanto, ele sabia de tudo, como se estivesse informado.  Pedi o endereço, trêmulo e emocionado.  Não me saía da cabeça como ele sabia quem eu era.  Agradeci ao farmacêutico e saí "pisando fundo".

          Na Avenida Almirante Ari Pereira, perguntei a um, a outro e, finalmente, estava defronte ao prédio.  Um tanto receoso, encostei o veículo.  Passam os andares e finalmente o elevador para.  Tive a impressão de que meu coração havia parado também.

          Descemos, na nossa frente havia duas portas.  Bati à porta da direita.  Ela abriu-se.  Era a mocinha gentil que me atendera da primeira vez:

          "Sr. Ronaldo?"

          "Perfeitamente!"

          "Um momentinho".  A porta da sala é a outra e Dona Zilméia vai atendê-lo.

          O espaço que separava uma porta da outra não ultrapassava três metros.  Com quatro passos estava diante da outra, que já começava a abrir-se.  Diante de mim, uma senhora sorriu muito educada e perguntou:

          “O senhor Ronaldo?”

          Confirmei e apresentei Norminha, minha esposa.

          A sala era um "L" e, no canto direito, um velhinho, usando pijama com uma blusa de lã por cima, sorriu para mim.  O apartamento era modesto; havia um enorme aquário numa das pernas do "L".  Ao ver a frágil figura do velhinho, veio-me à cabeça que aquele deveria ser, no mínimo, irmão gêmeo de Chico Xavier, tal a sua semelhança física com o famoso médium kardecista.   Tomado de grande emoção, aproximei-me do senhor Zélio.  Ele sorriu e disse, brincando:

          Pensei que você não chegaria a tempo.

          Não sei por que, mas aproximei-me, ajoelhei-me diante daquela figura simpática e tomei-lhe a bênção.  Ele tomou minhas mãos, fez-me sentar ao seu lado e repreendeu a Norminha, dizendo-lhe:

          Por que você não queria vir para cá?

          Quando consegui falar, disparei uma "rajada" de perguntas.  Eu estava totalmente abalado, o homem parecia saber tudo sobre mim e procurava acalmar-me, dizendo:

          Sei perfeitamente o que você quer saber e não há motivo para que esteja tão nervoso.

          Sua presença me acalmava.  Dona Zilméia, depois de conversar conosco por 15 minutos, explicou que era seu dia de tocar os trabalhos e desculpou-se, dizendo que precisava sair.  Pedi-lhe o endereço da Tenda e, depois de tudo anotado, ela retirou-se e fiquei na companhia do senhor Zélio.  Ele realmente tinha todas as respostas para minhas perguntas e, na maior parte do tempo, antecipava-se a elas.  Coisa que até hoje não consigo compreender.  Eu estava diante de alguém como nunca havia visto antes.
Finalmente eu encontrara o "homem".


          Zélio de Morais e as Primeiras Manifestações Espirituais na Umbanda:

          Quando do primeiro contato de Ronaldo Linares com Zélio de Morais, este lhe narrou como tudo começou:

               Em 1908, o jovem Zélio Fernandino de Morais estava com 17 anos e havia concluído o curso propedêutico (equivalente ao Ensino Médio atual).  Zélio preparava-se para ingressar na Escola Naval, quando fatos estranhos começaram a acontecer-lhe.  Ora ele assumia a estranha postura de um velho, falando coisas aparentemente desconexas, como se fosse outra pessoa e que havia vivido em outra Época; e, em outras ocasiões, sua forma física lembrava um felino lépido e desembaraçado, que parecia conhecer todos os segredos da natureza, os animais e as plantas.

          Este estado de coisas logo chamou a atenção de seus familiares, principalmente porque ele estava preparando-se para seguir carreira na Marinha, como aluno oficial.  Este estado de coisas foi se agravando e os chamados "ataques" repetiam-se cada vez com mais intensidade.  A família recorreu, então, ao médico Dr. Epaminondas de Morais, também da família, diretor do Hospício de Vargem Grande e tio de Zélio.  Após examiná-lo durante vários dias, reencaminhou-o à família, dizendo que a loucura não se enquadrava em nada do que ele havia conhecido, ponderando, ainda, que melhor seria encaminhá-lo a um padre, pois o garoto mais parecia estar endemoninhado.

          Como acontecia com quase todas as famílias importantes da Época, também havia na família um padre católico.  Por meio desse sacerdote, também tio de Zélio, foi realizado um exorcismo para livrá-lo daqueles incômodos ataques. Entretanto, nem esse nem os outros dois exorcismos realizados posteriormente, inclusive com a participação de outros sacerdotes católicos, conseguiram dar à família Morais o tão desejado sossego, pois as manifestações prosseguiram, apesar de tudo.

          A partir daí, a família passou a correr atrás de toda e qualquer melhora, ou melhor informação, que lhe trouxesse a esperança de uma solução para seu filho querido.  Um dia, alguém sugeriu que isso era coisa de espiritismo e que o melhor era encaminhá-lo a recém-fundada Federação Kardecista de Niterói, município vizinho àquele em que residia a família Morais, ou seja, São Gonçalo das Neves.  A Federação era então presidida pelo Sr. José de Souza, chefe de um departamento da Marinha chamado Toque Toque.

          O jovem Zélio foi conduzido, em 15 de novembro de 1908, a presença do Sr. José de Souza.  Estava num daqueles chamados ataques, que nada mais eram do que incorporações involuntárias de diferentes espíritos; e lá chegando, o Sr. José de Souza, médium vidente, interpelou o espírito manifestado no jovem Zélio e foi aproximadamente este o diálogo ocorrido:

          Sr. José: "Quem é você que ocupa o corpo deste jovem?"

          O Espírito: "Eu? Eu sou apenas um caboclo brasileiro."

          Sr. José: "Você se identifica como caboclo, mas eu vejo em você restos de vestes clericais."

          O Espírito: "O que você vê em mim são restos de uma existência anterior.  Fui padre, meu nome era Gabriel Malagrida e, acusado de bruxaria, fui sacrificado na fogueira da Inquisição por haver previsto o terremoto que destruiu Lisboa em 1755.  Mas, em minha última existência física, Deus concedeu-me o privilégio de nascer como um caboclo brasileiro."

          Sr. José: "E qual é seu nome?"

          O Espírito: "Se é preciso que eu tenha um nome, digam que sou o Caboclo das Sete Encruzilhadas, pois para mim não existirão Caminhos fechados.  Venho trazer a Umbanda, uma religião que harmonizará as famílias e que há de perdurar até o final dos séculos."

          No desenrolar desta "entrevista", entre muitas outras perguntas,o Sr. José de Souza teria perguntado se já não bastariam as religiões existentes e fez menção ao espiritismo então praticado, e foram estas as palavras do Caboclo das Sete Encruzilhadas: "Deus, em Sua  infinita bondade, estabeleceu na morte o grande nivelador universal: rico ou pobre, poderoso ou humilde, todos se tornam iguais na morte. Mas vocês homens preconceituosos, não contentes em estabelecer diferenças entre os vivos, procuram levar essas mesmas diferenças até mesmo além da barreira da morte.  Por que não podem nos visitar esses humildes trabalhadores do espaço, se, apesar de não haverem sido pessoas importantes na terra, também trazem importantes mensagens do além? Por que o "não" aos CABOCLOS e PRETOS-VELHOS?  Acaso não foram eles também filhos de Deus?"

          A seguir, fez uma série de revelações sobre o que estava à espera da humanidade.

          "Este mundo de iniqüidades mais uma vez será varrido pela dor, pela ambição do homem e pelo desrespeito às leis de Deus. As mulheres perderão a honra e a vergonha, a vil moeda comprará caracteres e o próprio homem se tornará afeminado.  Uma onda de sangue varrerá a Europa e quando todos acharem que o pior já foi atingido, uma outra onda de sangue, muito pior do que a primeira, voltará a envolver a humanidade, e um único engenho militar será capaz de destruir, em segundos, milhares de pessoas. O homem será uma vítima de sua própria máquina de destruição."

          Prosseguindo diante do Sr. José de Souza, disse ainda o Caboclo das Sete Encruzilhadas: "Amanhã, na casa onde meu aparelho mora, haverá uma mesa posta a toda e qualquer entidade que queira ou precise se manifestar, independentemente daquilo que haja sido em vida, todos serão ouvidos e nós aprenderemos com aqueles espíritos que souberem mais e ensinaremos àqueles que souberem menos e a nenhum viraremos as costas e nem diremos não, pois esta é a vontade do Pai."

          Sr. José: "E que nome darão a esta Igreja?"

          O Caboclo: "TENDA NOSSA SENHORA DA PIEDADE, pois da mesma forma que MARIA ampara nos braços o filho querido, também serão amparados os que se socorrerem da UMBANDA."

          A denominação de "Tenda" foi justificada assim pelo Caboclo: "Igreja, Templo, Loja dão um aspecto de superioridade, enquanto que Tenda lembra uma casa humilde."

          Dessa forma, em São Gonçalo das Neves, vizinho a Niterói, do outro lado da Baía de Guanabara, na sala de jantar da família Morais, um grupo de curiosos kardecistas compareceu, no dia 15 de novembro de 1908, para ver como seriam estas incorporações, para eles indesejáveis ou injustificáveis.  O diálogo do Caboclo das Sete Encruzilhadas, como passou a ser chamado, havia provocado muita especulação e alguns médiuns, que haviam sido escorraçados de mesas kardecistas, por haverem incorporado caboclos, crianças ou pretos-velhos, solidarizaram-se com aquele garoto que parecia não estar compreendendo o que lhe acontecia e que de repente se via como líder de um grupo religioso, obra que deveria durar toda a sua vida e que só terminaria com a sua morte, mas que suas filhas Zélia e Zilméia prosseguem com o mesmo afã.

          A Tenda de Umbanda Nossa Senhora da Piedade existe até hoje.  Seu patrono segue sendo o Caboclo das Sete Encruzilhadas.

          A história se encarregou de mostrar e provar a exatidão das previsões do Caboclo das Sete Encruzilhadas.  As duas primeiras guerras, as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki e a grande degeneração da moral, que, em certos países do mundo, permite que possam se unir em matrimônio até mesmo seres do mesmo sexo.  O poder do dinheiro e o total desrespeito à vida humana são provas incontestáveis do poder e da clarividência do Caboclo das Sete Encruzilhadas.

          Uma comprovação da existência do Frei Gabriel Malagrida pode ser feita no livro de Henrique José de Souza, Eubiose: A verdadeira Iniciação, 4a ed. Rio de Janeiro: Associação Editorial Aquarius, 1978.

          Segundo Henrique José de Souza: "Gabriel Malagrida, ancião de 80 anos, foi queimado por Verdugos (Inquisição), em 1761" (págs. 250-251).

          Existe, na Biblioteca de Amsterdã, uma cópia do seu FAMOSO PROCESSO, traduzido da edição de Lisboa.  Malagrida, com efeito, foi acusado de feitiçaria e de manter pacto com o Diabo, que lhe havia revelado o futuro.

          A profecia comunicada pelo "inimigo do gênero humano" (Quer dizer das profecias comunicadas aos Santos da Igreja, inclusive Santa Odila, que profetizou até a última guerra) ao pobre Jesuíta Visionário está concebida nos seguintes termos: "O Réu confessou que o demônio, sob a forma da Virgem Maria, lhe tinha ordenado a escrever a vida do Anti-Cristo; que havia de existir, a bem dizer, três anti-Cristos sucessivos, e que o último nasceria em Milão, da sacrílega união entre um frade e uma freira, etc.  E por aí outras tantas coisas que obrigaram a confessar."

          A Tenda Nossa Senhora da Piedade é reconhecida hoje como a primeira Tenda de Umbanda e a data de 15 de novembro de 1908 é reconhecida como a data de fundação oficial da Umbanda.

          Ronaldo Linares fez seu primeiro contato com Zélio de Morais em 1970.  Antes disso, em 1969, o pesquisador norte-americano David St. Claire fez a mesma descoberta em sua estada no Brasil.


          Raízes do Ritual Umbandista:

          Quando Ronaldo Linhares efetuou os primeiros contatos com Zélio de Morais, indagou sobre a origem do ritual umbandista e ele fez os seguintes esclarecimentos:

          "O rito nasceu naturalmente, como conseqüência, principalmente, da presença do índio e pela presença do elemento negro, não tanto pela presença física do negro, mas sim pela presença do preto-velho incorporado, e, para ser mais preciso, no mesmo dia e pela primeira vez houve a incorporação de Pai Antonio, naquela que haveria de ser a primeira Tenda de Umbanda do Brasil.   A Tenda Nossa Senhora da Piedade.

          Segundo relato de Zélio de Morais, o Caboclo das Sete Encruzilhadas havia avisado que subiria para dar passagem a outra entidade que desejava se manifestar.  Assim se manifestou, no corpo de Zélio de Morais, o espírito do velho ex-escravo, que parecia demonstrar sentir-se pouco à vontade frente a tanta gente e que, se recusando a permanecer na mesa em que se dera a incorporação, procurava passar despercebido, humilde, aparentando muita idade e o corpo curvado, o que dava ao jovem Zélio um aspecto estranho, quase irreal.  Essa entidade parecia tão pouco à vontade, que logo despertou profundo sentimento de compaixão e de solidariedade entre os presentes.  Questionado então por que não se sentava à mesa, com os demais irmãos encarnados, respondeu:

          "Negro num senta não, meu sinhô.  Negro fica aqui mesmo.  Isso é coisa de sinhô branco i negro deve arrespeitá."

          Era a primeira manifestação desse espírito iluminado, mas a morte não retoca seu escolhido, mudando-o para o bem ou para o mal.  Não havia afastado desse injustiçado o medo que ele tantas vezes havia sentido ante a prepotência do branco escravagista e, ante a insistência de seus interlocutores, disse:

          "Num carece preocupá não, negro fica nu toco, que é lugá di negro."

          Procurava, assim, demonstrar que se contentava em ocupar um lugar mais singelo, para não melindrar nenhum dos presentes.

          Indagado sobre seu nome, disse que era "Tonho" e que era "PAI  ANTONIO".  Surgiu, assim, esta forma de chamar os pretos-velhos de "PAI".

          Ao responder como havia sido sua morte, disse que havia ido à mata apanhar lenha, sentiu alguma coisa estranha, sentou-se e nada mais se lembrava.

          Sensibilizado com tanta humildade, alguém lhe perguntou respeitosamente: "Vovô, o senhor tem saudade de alguma coisa que deixou ficar aqui na terra?"

          Este respondeu: "Minha cachimba, negro qué pito que deixou no toco.  Manda mureque buscá."

          Grande espanto tomou conta dos presentes.  Era a primeira vez que algum espírito pedia alguma coisa de material, e a surpresa foi logo substituída pelo desejo de atender ao pedido do velhinho.  Mas ninguém tinha um cachimbo para ceder-lhe.  Na reunião seguinte, muitos pensaram no pedido e uma porção de cachimbos, dos mais diferentes tipos, apareceu nas mãos dos freqüentadores da casa, incluindo-se alguns médiuns que haviam sido afastados de centros espíritas kardecistas, justamente porque haviam permitido a incorporação de índios, pobres ou pretos como aquele e que, solidários, buscavam na nova casa, a Tenda Nossa Senhora da Piedade, a oportunidade que lhes fora negada em seus centros de origem.

          A alegria do velhinho em poder pitar novamente o seu cachimbo logo seria repetida quando os outros médiuns já mencionados também passaram livremente a permitir a presença de seus caboclos, de seus pretos-velhos e demais entidades consideradas não doutas pelos kardecistas de então, pobres tolos preconceituosos que confundiam cultura com bondade.

          Foi dessa maneira que foi introduzido na "mesa" espírita o primeiro rito.  Outros lhe seguiram, como, por exemplo, quando houve a informação de que os índios tinham o hábito de fumar e que foram eles que primeiro descobriram as propriedades dessa planta que eles enrolavam num enorme charuto, que era usado coletivamente por todos os participantes de seus cultos religiosos, sendo desta forma uma espécie de planta sagrada.

          Desde que haja moderação e cautela, negar o pito ao preto-velho seria hoje uma grande maldade.  Entretanto, deve-se sempre ter em mente que o seu uso deve ater-se somente ao rito e evitar-se os abusos e as deturpações que testemunhamos constantemente, não raras vezes, tocando as raias do absurdo e do escândalo, para o desprestígio desta religião que nasceu sob o signo da paz e do amor.

          Atualmente, sabe-se que o uso do fumo pelas entidades incorporadas tem o efeito purificador quando elas atendem alguma pessoa com problemas espirituais.  A fumaça age como um desagregador de maus fluidos, atingindo o perispírito dos espíritos obsessores.  Por extensão destes hábitos incorporados ao terreiro, passou-se a oferecer doces às crianças incorporadas e, às vezes, a promover festas infantis.  Contudo, o que é usual nestes casos, e naturalmente influindo desta ou daquela forma nas demais maneiras de incorporação, sempre com o objetivo de tratar os incorporantes (espíritos) como velhos e queridos amigos a quem recebemos com grande satisfação.

          Com a "liberdade" trazida pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, as pessoas afugentadas da elitizada mesa kardecista de então passaram a freqüentar a nova religião.  Uma boa parcela dessas pessoas era de raça negra (no Rio de Janeiro).  Isso fez com que a Umbanda passasse a contar com uma boa parte de médiuns de raça negra, que se sentiam muito à vontade pela ausência de preconceitos.

          Estes médiuns começaram a enriquecer o ritual umbandista e hoje muitos rituais com o nome de Umbanda são praticados... muitos nem são umbanda... são misturas desconexas de ritos... mas quando encontramos um verdadeiro terreiro ou tenda de umbanda... algo dentro de nós nos emociona... é como estivéssemos sentindo a presença de Cristo e de N.Sra. na humildade dos pretos velhos; na simplicidade dos índios caboclos em sua pureza mental e moral e no cheiro bom da arruda...alecrim...alfazema e guiné...
     
15 de nov. de 2004 (94 anos do marco oficioso da Umbanda no Brasil) 

Nenhum comentário:

Postar um comentário