"Para
mim, ele, sem dúvida nenhuma, é o Pai da Umbanda."
(Ronaldo Linhares)
Em julho de 1970, eu estava numa das minhas viagens ao Rio de Janeiro, com
fragmentos de uma informação que havia colhido de uma conversa com o Sr. Demétrios
Domingues, segundo o qual a mais antiga Tenda de Umbanda seria a de Zélio de
Morais. Eu me encontrava em São João do Meriti-RJ,
já de saída para São Paulo, quando decidi que procuraria essa pessoa e se é que
ela realmente ainda existia. Após me
informar de como chegar a Cachoeiras de Macacu, atravessei a ponte Rio-Niterói
e, tomando a estrada para Friburgo, consegui chegar,
depois de várias informações erradas.
Caída à tarde naquela cidade.
Era dia de jogo do Brasil na copa do
mundo, o que serviu para complicar meu trabalho. Em todo local que pedia
informações, todos estavam com olhos grudados na
televisão. Meu carro, embora novo, tinha um mau contato no rádio e a
minha companheira Norminha passou metade da viagem dando
tapas embaixo do painel, para ouvir o jogo. Várias vezes ela me disse que
aquilo era uma loucura e que o melhor era voltarmos ao
Rio de Janeiro, mas eu estava determinado a esclarecer o assunto de uma vez por
todas. Ao
entrar na cidade, que é muito pequena,
dirigi-me primeiro a um bar, pedindo as primeiras informações, pois contava
encontrar uma pessoa muito popular na cidade.
Fiquei muito surpreso com o fato de que ninguém soube dar-me nenhuma
informação, nem quanto à figura de Zélio nem quanto à sua
Tenda.
Essa pessoa que eu procurava, se
ainda estivesse viva, devia ser um ancião e, assim pensando, procurei uma
farmácia, pois nessas pequenas comunidades os velhos
quase sempre freqüentam regularmente a farmácia. Nova decepção: ninguém
conhecia Zélio e nem havia ouvido falar de sua
Tenda.
Cheguei a procurar a Igreja local e
indaguei ao padre, apresentando as minhas credenciais de repórter. Este
também declarou nada saber a respeito de quem eu
procurava (mais tarde vim a saber que a família Morais não era conhecida do
padre, como participava financeiramente das
realizações sociais da igreja).
Já quase desistindo, parei numa
padaria, em uma das travessas da cidade, e foi lá que encontrei o
"louco". Demo-lhe este nome porque durante a nossa conversa
ele pareceu não ser um indivíduo equilibrado. Afirmou conhecer Zélio e
disse-me que ele tinha um bar em Boca do Mato.
Contestei imediatamente, pois as informações que eu tinha diziam que
Zélio morava em Cachoeiras.
Depois de muitas explicações, fiquei
sabendo que Boca do Mato era um bairro desse micromunicípio, com praticamente
uma única rua que terminava na mata, daí o
nome que lhe deram: Boca do Mato. Um tanto temeroso ainda, convidei o
"louco" para que nos levasse até o local.
Norminha estava apavorada com a minha
atitude, achando que estávamos sendo conduzidos a uma emboscada. O cair
da tarde era frio e garoava muito,
lembrando uma tarde de inverno paulistano. A região serrana talvez
propiciasse esse clima. Ao voltarmos à estrada, o
"louco" apontava para a propriedade mais bonita e dizia: "Eu
vendi para o deputado, para o gerente do Banco do Brasil, etc". Se era fato
ou não, o certo é que jamais ficaremos sabendo. Finalmente uma curva na
estrada, nenhuma casa aparente, ele nos pede para entrarmos à
direita. Só a menos de dez metros da entrada é que eu consegui enxergar a
saída.
O receio transformou-se em medo.
Apesar de tudo, fomos em frente: uma rua sinuosa, várias pontes, algumas
casas esparsas, nenhuma casa de comércio
aberta. Paramos e ele disse: "É aqui!". A casa
estava fechada. Bati palmas várias vezes; numa casa vizinha uma janela se abriu e
uma senhora de meia-idade, muito atenciosa, perguntou: "Vocês estão
procurando quem?" Mostrei-lhe as credenciais e expliquei
tudo. "Sou repórter e preciso encontrar Zélio". Ela então
me esclarece: "Seu Zélio está muito
doente e não há ninguém em casa".
Finalmente alguém confirmou que Sr.
Zélio existia. Perguntei onde o encontrava e ela disse: "Ele está na
casa da filha, em Niterói". Senti como se tivesse
pisado num alçapão, pois havia passado por Niterói e levei duas horas para
chegar até ali. Teria de fazer todo o caminho de volta.
Perguntei se ela teria o endereço. Ela, muito educada, respondeu:
"Não sei exatamente onde eles moram, mas tenho o telefone da
filha".
Depois de assegurar-me de que
realmente o apartamento ficava em Niterói, despedi-me. O
"louco" estava eufórico, a informação era correta. Paramos
em Cachoeiras de Macacu e eu o gratifiquei. Ele agradeceu e saiu correndo
com o dinheiro em direção ao primeiro bar, "como um
louco".
Voltei para Niterói.
Norminha dizia que o louco era eu por
continuar naquela busca inútil, mas me acompanhava, apesar de tudo. Já
não se falava mais em futebol, somente se
encontraríamos ou não o Sr. Zélio.
Chegamos em Niterói por volta das 19
horas. Assim que deixei estrada, cruzei algumas ruas e cheguei a uma
farmácia. "Cariocamente", estacionei o
carro na calçada, desci, apresentei minhas credenciais e pedi para usar o
telefone. Logo, em minha volta estava estabelecida a confusão.
"O senhor é repórter? Foi crime? Onde foi? Quem morreu?"
Tentando ignorar as perguntas, consegui completar a ligação. Do
outro lado da linha uma voz de menina atendeu-me. Eu disse apenas que era
de São Paulo, que queria entrevistar o Sr. Zélio e que
havia sido informado de que ele se encontrava naquele telefone.
A mocinha pediu-me que esperasse um
instante. Eu a ouvi transmitindo as informações que lhe dera. Outra
voz no aparelho, desta vez a de uma senhora; explico os
objetivos da minha visita (em nenhum momento declinei meu nome).
Ouço a pessoa com quem estou
conversando dirigir-se a outra e explicar: "Papai, há um senhor de São
Paulo ao telefone, que veio entrevistá-lo. O senhor pode atendê-lo?"
E, para minha surpresa, ouço lá no fundo uma voz cansada responder:
"É Ronaldo, minha filha, que
estou esperando há muito tempo. O homem que vai tornar o meu trabalho
conhecido em todo o mundo". Eu ouvia e não acreditava.
Eu não havia dito a ninguém o meu nome e, no entanto, ele sabia de tudo,
como se estivesse informado. Pedi o endereço, trêmulo e emocionado.
Não me saía da cabeça como ele sabia quem eu era. Agradeci ao
farmacêutico e saí "pisando fundo".
Na Avenida Almirante Ari Pereira,
perguntei a um, a outro e, finalmente, estava defronte ao prédio. Um
tanto receoso, encostei o veículo. Passam os andares e
finalmente o elevador para. Tive a impressão de que meu coração havia
parado também.
Descemos, na nossa frente havia duas
portas. Bati à porta da direita. Ela abriu-se. Era a mocinha
gentil que me atendera da primeira vez:
"Sr. Ronaldo?"
"Perfeitamente!"
"Um momentinho". A
porta da sala é a outra e Dona Zilméia vai atendê-lo.
O espaço que separava uma porta da
outra não ultrapassava três metros. Com quatro passos estava diante da
outra, que já começava a abrir-se. Diante de
mim, uma senhora sorriu muito educada e perguntou:
“O senhor Ronaldo?”
Confirmei e apresentei Norminha,
minha esposa.
A sala era um "L" e, no
canto direito, um velhinho, usando pijama com uma blusa de lã por cima, sorriu
para mim. O apartamento era modesto; havia um
enorme aquário numa das pernas do "L". Ao ver a frágil figura
do velhinho, veio-me à cabeça que aquele deveria ser, no mínimo,
irmão gêmeo de Chico Xavier, tal a sua semelhança física com o famoso médium
kardecista. Tomado de grande emoção, aproximei-me
do senhor Zélio. Ele sorriu e disse, brincando:
Pensei que você não chegaria a tempo.
Não sei por que, mas aproximei-me,
ajoelhei-me diante daquela figura simpática e tomei-lhe a bênção. Ele
tomou minhas mãos, fez-me sentar ao seu lado e
repreendeu a Norminha, dizendo-lhe:
Por que você não queria vir para cá?
Quando consegui falar, disparei uma
"rajada" de perguntas. Eu estava totalmente abalado, o homem
parecia saber tudo sobre mim e procurava acalmar-me,
dizendo:
Sei perfeitamente o que você quer
saber e não há motivo para que esteja tão nervoso.
Sua presença me acalmava. Dona
Zilméia, depois de conversar conosco por 15 minutos, explicou que era seu dia
de tocar os trabalhos e desculpou-se, dizendo que
precisava sair. Pedi-lhe o endereço da Tenda e, depois de tudo anotado,
ela retirou-se e fiquei na companhia do senhor Zélio.
Ele realmente tinha todas as respostas para minhas perguntas e, na maior
parte do tempo, antecipava-se a elas. Coisa que até hoje
não consigo compreender. Eu estava diante de alguém como nunca havia
visto antes.
Finalmente eu encontrara o
"homem".
Zélio de Morais e as Primeiras Manifestações Espirituais na Umbanda:
Quando do primeiro contato de Ronaldo
Linares com Zélio de Morais, este lhe narrou como tudo começou:
Em
1908, o jovem Zélio Fernandino de Morais estava com 17 anos e havia concluído o
curso propedêutico (equivalente ao Ensino Médio atual). Zélio
preparava-se para ingressar na Escola Naval, quando fatos estranhos começaram a
acontecer-lhe. Ora ele assumia a estranha postura de um velho,
falando coisas aparentemente desconexas, como se fosse outra pessoa e que havia
vivido em outra Época; e, em outras ocasiões,
sua forma física lembrava um felino lépido e desembaraçado, que parecia
conhecer todos os segredos da natureza, os animais e as
plantas.
Este estado de coisas logo chamou a
atenção de seus familiares, principalmente porque ele estava preparando-se para
seguir carreira na Marinha, como aluno
oficial. Este estado de coisas foi se agravando e os chamados
"ataques" repetiam-se cada vez com mais intensidade. A família
recorreu, então, ao médico Dr. Epaminondas de Morais, também da família,
diretor do Hospício de Vargem Grande e tio de Zélio. Após
examiná-lo durante vários dias, reencaminhou-o à família, dizendo que a loucura
não se enquadrava em nada do que ele havia conhecido,
ponderando, ainda, que melhor seria encaminhá-lo a um padre, pois o garoto mais
parecia estar endemoninhado.
Como acontecia com quase todas as
famílias importantes da Época, também havia na família um padre católico.
Por meio desse sacerdote, também tio de Zélio,
foi realizado um exorcismo para livrá-lo daqueles incômodos ataques.
Entretanto, nem esse nem os outros dois exorcismos
realizados posteriormente, inclusive com a participação de outros sacerdotes
católicos, conseguiram dar à família Morais o tão desejado
sossego, pois as manifestações prosseguiram, apesar de tudo.
A partir daí, a família passou a
correr atrás de toda e qualquer melhora, ou melhor informação, que lhe
trouxesse a esperança de uma solução para seu filho querido.
Um dia, alguém sugeriu que isso era coisa de espiritismo e que o melhor
era encaminhá-lo a recém-fundada Federação Kardecista de
Niterói, município vizinho àquele em que residia a família Morais, ou seja, São
Gonçalo das Neves. A Federação era então
presidida pelo Sr. José de Souza, chefe de um departamento da Marinha chamado
Toque Toque.
O jovem Zélio foi conduzido, em 15 de
novembro de 1908, a presença do Sr. José de Souza. Estava num daqueles
chamados ataques, que nada mais eram do que
incorporações involuntárias de diferentes espíritos; e lá chegando, o Sr. José
de Souza, médium vidente, interpelou o espírito
manifestado no jovem Zélio e foi aproximadamente este o diálogo ocorrido:
Sr. José: "Quem é você que ocupa
o corpo deste jovem?"
O Espírito: "Eu? Eu sou apenas
um caboclo brasileiro."
Sr. José: "Você se identifica
como caboclo, mas eu vejo em você restos de vestes clericais."
O Espírito: "O que você vê em
mim são restos de uma existência anterior. Fui padre, meu nome era
Gabriel Malagrida e, acusado de bruxaria, fui sacrificado na
fogueira da Inquisição por haver previsto o terremoto que destruiu Lisboa em
1755. Mas, em minha última existência física, Deus
concedeu-me o privilégio de nascer como um caboclo brasileiro."
Sr. José: "E qual é seu
nome?"
O Espírito: "Se é preciso que eu
tenha um nome, digam que sou o Caboclo das Sete Encruzilhadas, pois para mim
não existirão Caminhos fechados.
Venho trazer a Umbanda, uma religião que harmonizará as famílias e que há
de perdurar até o final dos séculos."
No desenrolar desta
"entrevista", entre muitas outras perguntas,o Sr. José de Souza teria
perguntado se já não bastariam as religiões existentes e fez menção ao
espiritismo então praticado, e foram estas as palavras do Caboclo das Sete
Encruzilhadas: "Deus, em Sua infinita bondade,
estabeleceu na morte o grande nivelador universal: rico ou pobre, poderoso ou
humilde, todos se tornam iguais na morte. Mas
vocês homens preconceituosos, não contentes em estabelecer diferenças entre os
vivos, procuram levar essas mesmas diferenças até mesmo além da
barreira da morte. Por que não podem nos visitar esses humildes
trabalhadores do espaço, se, apesar de não haverem sido pessoas
importantes na terra, também trazem importantes mensagens do além? Por que o
"não" aos CABOCLOS e PRETOS-VELHOS?
Acaso não foram eles também filhos de Deus?"
A seguir, fez uma série de revelações
sobre o que estava à espera da humanidade.
"Este mundo de iniqüidades mais
uma vez será varrido pela dor, pela ambição do homem e pelo desrespeito às leis
de Deus. As mulheres perderão a honra e a
vergonha, a vil moeda comprará caracteres e o próprio homem se tornará
afeminado. Uma onda de sangue varrerá a Europa e quando
todos acharem que o pior já foi atingido, uma outra onda de sangue, muito pior
do que a primeira, voltará a envolver a
humanidade, e um único engenho militar será capaz de destruir, em segundos,
milhares de pessoas. O homem será uma vítima de sua própria
máquina de destruição."
Prosseguindo diante do Sr. José de
Souza, disse ainda o Caboclo das Sete Encruzilhadas: "Amanhã, na casa onde
meu aparelho mora, haverá uma mesa posta a
toda e qualquer entidade que queira ou precise se manifestar, independentemente daquilo que haja sido em vida, todos
serão ouvidos e nós aprenderemos com aqueles espíritos que souberem mais e
ensinaremos àqueles que souberem menos e a nenhum
viraremos as costas e nem diremos não, pois esta é a vontade do Pai."
Sr. José: "E que nome darão a
esta Igreja?"
O Caboclo: "TENDA NOSSA SENHORA
DA PIEDADE, pois da mesma forma que MARIA ampara nos braços o filho querido, também serão amparados os que se
socorrerem da UMBANDA."
A denominação de "Tenda"
foi justificada assim pelo Caboclo: "Igreja, Templo, Loja dão um aspecto
de superioridade, enquanto que Tenda lembra uma casa
humilde."
Dessa forma, em São Gonçalo das
Neves, vizinho a Niterói, do outro lado da Baía de Guanabara, na sala de jantar
da família Morais, um grupo de curiosos
kardecistas compareceu, no dia 15 de novembro de 1908, para ver como seriam
estas incorporações, para eles indesejáveis
ou injustificáveis. O diálogo do Caboclo das Sete Encruzilhadas, como
passou a ser chamado, havia provocado muita especulação e
alguns médiuns, que haviam sido escorraçados de mesas kardecistas, por haverem
incorporado caboclos, crianças ou pretos-velhos,
solidarizaram-se com aquele garoto que parecia não estar compreendendo o que
lhe acontecia e que de repente se via como líder de
um grupo religioso, obra que deveria durar toda a sua vida e que só terminaria
com a sua morte, mas que suas filhas Zélia e
Zilméia prosseguem com o mesmo afã.
A Tenda de Umbanda Nossa Senhora da
Piedade existe até hoje. Seu patrono segue sendo o Caboclo das Sete
Encruzilhadas.
A história se encarregou de mostrar e
provar a exatidão das previsões do Caboclo das Sete Encruzilhadas. As
duas primeiras guerras, as bombas atômicas sobre
Hiroshima e Nagasaki e a grande degeneração da moral, que, em certos países do
mundo, permite que possam se unir em
matrimônio até mesmo seres do mesmo sexo. O poder do dinheiro e o total
desrespeito à vida humana são provas incontestáveis do
poder e da clarividência do Caboclo das Sete Encruzilhadas.
Uma comprovação da existência do Frei
Gabriel Malagrida pode ser feita no livro de Henrique José de Souza, Eubiose: A verdadeira Iniciação, 4a ed. Rio de
Janeiro: Associação Editorial Aquarius, 1978.
Segundo Henrique José de Souza:
"Gabriel Malagrida, ancião de 80 anos, foi queimado por Verdugos
(Inquisição), em 1761" (págs. 250-251).
Existe, na Biblioteca de Amsterdã,
uma cópia do seu FAMOSO PROCESSO, traduzido da edição de Lisboa.
Malagrida, com efeito, foi acusado de feitiçaria e de
manter pacto com o Diabo, que lhe havia revelado o futuro.
A profecia comunicada pelo
"inimigo do gênero humano" (Quer dizer das profecias comunicadas aos
Santos da Igreja, inclusive Santa Odila, que profetizou
até a última guerra) ao pobre Jesuíta Visionário está concebida nos seguintes
termos: "O Réu confessou que o demônio, sob a
forma da Virgem Maria, lhe tinha ordenado a escrever a vida do Anti-Cristo; que
havia de existir, a bem dizer, três anti-Cristos
sucessivos, e que o último nasceria em Milão, da sacrílega união entre um frade
e uma freira, etc. E por aí outras tantas
coisas que obrigaram a confessar."
A Tenda Nossa Senhora da Piedade é
reconhecida hoje como a primeira Tenda de Umbanda e a data de 15 de novembro de 1908 é reconhecida como a data de
fundação oficial da Umbanda.
Ronaldo Linares fez seu primeiro
contato com Zélio de Morais em 1970. Antes disso, em 1969, o pesquisador
norte-americano David St. Claire fez a mesma descoberta
em sua estada no Brasil.
Raízes do Ritual Umbandista:
Quando Ronaldo Linhares efetuou os
primeiros contatos com Zélio de Morais, indagou sobre a origem do ritual
umbandista e ele fez os seguintes esclarecimentos:
"O rito nasceu naturalmente,
como conseqüência, principalmente, da presença do índio e pela presença do
elemento negro, não tanto pela presença física do
negro, mas sim pela presença do preto-velho incorporado, e, para ser mais
preciso, no mesmo dia e pela primeira vez houve a
incorporação de Pai Antonio, naquela que haveria de ser a primeira Tenda de
Umbanda do Brasil. A Tenda Nossa Senhora da Piedade.
Segundo relato de Zélio de Morais, o
Caboclo das Sete Encruzilhadas havia avisado que subiria para dar passagem a
outra entidade que desejava se manifestar.
Assim se manifestou, no corpo de Zélio de Morais, o espírito do velho
ex-escravo, que parecia demonstrar sentir-se pouco à
vontade frente a tanta gente e que, se recusando a permanecer na mesa em que se
dera a incorporação, procurava passar
despercebido, humilde, aparentando muita idade e o corpo curvado, o que dava ao
jovem Zélio um aspecto estranho, quase irreal.
Essa entidade parecia tão pouco à vontade, que logo despertou profundo
sentimento de compaixão e de solidariedade entre os presentes.
Questionado então por que não se sentava à mesa, com os demais irmãos
encarnados, respondeu:
"Negro num senta não, meu sinhô.
Negro fica aqui mesmo. Isso é coisa de sinhô branco i negro deve
arrespeitá."
Era a primeira manifestação desse
espírito iluminado, mas a morte não retoca seu escolhido, mudando-o para o bem
ou para o mal. Não havia afastado desse
injustiçado o medo que ele tantas vezes havia sentido ante a prepotência do
branco escravagista e, ante a insistência de seus
interlocutores, disse:
"Num carece preocupá não, negro
fica nu toco, que é lugá di negro."
Procurava, assim, demonstrar que se
contentava em ocupar um lugar mais singelo, para não melindrar nenhum dos
presentes.
Indagado sobre seu nome, disse que
era "Tonho" e que era "PAI ANTONIO". Surgiu,
assim, esta forma de chamar os pretos-velhos de "PAI".
Ao responder como havia sido sua
morte, disse que havia ido à mata apanhar lenha, sentiu alguma coisa estranha,
sentou-se e nada mais se lembrava.
Sensibilizado com tanta humildade,
alguém lhe perguntou respeitosamente: "Vovô, o senhor tem saudade de
alguma coisa que deixou ficar aqui na terra?"
Este respondeu: "Minha cachimba,
negro qué pito que deixou no toco. Manda mureque buscá."
Grande espanto tomou conta dos
presentes. Era a primeira vez que algum espírito pedia alguma coisa de
material, e a surpresa foi logo substituída pelo
desejo de atender ao pedido do velhinho. Mas ninguém tinha um cachimbo
para ceder-lhe. Na reunião seguinte, muitos pensaram no
pedido e uma porção de cachimbos, dos mais diferentes tipos, apareceu nas mãos
dos freqüentadores da casa, incluindo-se
alguns médiuns que haviam sido afastados de centros espíritas kardecistas,
justamente porque haviam permitido a incorporação de
índios, pobres ou pretos como aquele e que, solidários, buscavam na nova casa,
a Tenda Nossa Senhora da Piedade, a oportunidade que
lhes fora negada em seus centros de origem.
A alegria do velhinho em poder pitar
novamente o seu cachimbo logo seria repetida quando os outros médiuns já mencionados também passaram livremente
a permitir a presença de seus caboclos, de seus pretos-velhos e demais
entidades consideradas não doutas pelos
kardecistas de então, pobres tolos preconceituosos que confundiam cultura com
bondade.
Foi dessa maneira que foi introduzido
na "mesa" espírita o primeiro rito. Outros lhe seguiram, como,
por exemplo, quando houve a informação de que os índios
tinham o hábito de fumar e que foram eles que primeiro descobriram as
propriedades dessa planta que eles enrolavam num enorme
charuto, que era usado coletivamente por todos os participantes de seus cultos
religiosos, sendo desta forma uma espécie de planta
sagrada.
Desde que haja moderação e cautela,
negar o pito ao preto-velho seria hoje uma grande maldade. Entretanto,
deve-se sempre ter em mente que o seu uso deve
ater-se somente ao rito e evitar-se os abusos e as deturpações que
testemunhamos constantemente, não raras vezes,
tocando as raias do absurdo e do escândalo, para o desprestígio desta religião
que nasceu sob o signo da paz e do amor.
Atualmente, sabe-se que o uso do fumo
pelas entidades incorporadas tem o efeito purificador quando elas atendem alguma pessoa com problemas espirituais.
A fumaça age como um desagregador de maus fluidos, atingindo o
perispírito dos espíritos obsessores. Por extensão destes
hábitos incorporados ao terreiro, passou-se a oferecer doces às crianças
incorporadas e, às vezes, a promover festas infantis.
Contudo, o que é usual nestes casos, e naturalmente influindo desta ou
daquela forma nas demais maneiras de incorporação, sempre com o
objetivo de tratar os incorporantes (espíritos) como velhos e queridos amigos a
quem recebemos com grande satisfação.
Com a "liberdade" trazida
pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, as pessoas afugentadas da elitizada mesa
kardecista de então passaram a freqüentar a nova
religião. Uma boa parcela dessas pessoas era de raça negra (no Rio de
Janeiro). Isso fez com que a Umbanda passasse a contar com
uma boa parte de médiuns de raça negra, que se sentiam muito à vontade pela ausência de preconceitos.
Estes médiuns começaram a enriquecer
o ritual umbandista e hoje muitos rituais com o nome de Umbanda são
praticados... muitos nem são umbanda... são misturas
desconexas de ritos... mas quando encontramos um verdadeiro terreiro ou tenda
de umbanda... algo dentro de nós nos
emociona... é como estivéssemos sentindo a presença de Cristo e de
N.Sra. na humildade dos pretos velhos; na simplicidade dos
índios caboclos em sua pureza mental e moral e no cheiro bom da
arruda...alecrim...alfazema e guiné...
15 de nov. de 2004 (94 anos do marco oficioso da Umbanda no
Brasil)
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