E no entardecer do dia 21 de setembro de 1761, na Praça do Rossio, no
centro de Lisboa, um santo foi queimado na fogueira dos hereges. Gabriel
Malagrida entregou a alma a Deus e o corpo aos carrascos. Tinha 72 anos, 30
deles passados de pés descalços peregrinando pelo Norte e Nordeste brasileiros.
Ergueu igrejas e mosteiros, protegeu índios e prostitutas, caminhou mais de dez
mil quilômetros entre o Pará e a Bahia. Ganhou fama de taumaturgo, milagreiro.
Por ordem e trama do primeiro-ministro Marquês de Pombal, Malagrida terminou
acusado de blasfêmia e heresia. Ouviu a sentença de morte no alto de uma
carroça, com um barrete de palhaço na cabeça, mãos amarradas para trás e batina
pintada com figuras demoníacas. Quando Pombal, ao lado do rei d. José, ordenou
a execução, o padre beijou as escadas do cadafalso, virou para o povo, jurou
inocência e perdoou seus acusadores. Abaixou a cabeça, ajudou ao próprio algoz
a colocar a corda em seu pescoço. Na primeira puxada, o laço se rompeu e a
multidão gritou assombrada. A tragédia estava adiada por alguns minutos. Homens
e mulheres começaram a prece dos agonizantes, mas não terminaram a oração.
Foram impedidos pelos quatro mil soldados de prontidão. ‘‘Senhor, nas vossas mãos
entrego minha alma’’. Derradeiras palavras. Em poucos segundos, o padre estava
enforcado pela Santa Inquisição. O carrasco acendeu a fogueira, onde o corpo
queimaria toda a madrugada, velado pelos milhares de fiéis. As cinzas foram
jogadas nas águas do rio Tejo. Quando o dia amanheceu, os católicos de Lisboa
espalharam uma mesma notícia: o fogo não queimara o coração do mártir. A
tragédia de um peregrino Padre Severino ensina aos fiéis da Paraíba os feitos
de Malagrida.
Gabriel Malagrida nasceu padre:
Ainda pequeno, na cidade de Menaggio, no Norte da Itália, aprendeu com o pai
Giácomo, o dom da caridade. O patriarca era médico de renome, consultado até
por príncipes, mas dedicava boa parte do trabalho ao cuidado de doentes pobres
que visitava nas distantes montanhas. Gabriel ia junto. Adorava estudar
religião e aproveitava as férias para ensinar catecismo aos irmãos e colegas da
rua. Sua brincadeira predileta era montar altar no quintal. A mãe, Ângela,
chamava o filho de ‘‘o anjo da casa’’. Era morada cheia de religiosidade. Na
parte nobre da casa, havia o que os Malagridas apelidaram de o ‘‘quarto do
santo‘‘ por conta do teto coberto de pinturas de Nossa Senhora. O sonho do
casal era ver os filhos formados padre e rezando missa ali. O projeto deu
certo. Dos onze herdeiros, três viraram sacerdotes. Aos 12 anos, o pequeno
Gabriel foi estudar no colégio dos padres Somascos, na cidade de Como. Não era
um aluno como os outros; tinha hábitos estranhos. Mordia os dedos até sangrar e
quando lhe perguntavam a razão daquilo respondia: ‘‘é para a salvação dos
infiéis’’. Nascia assim o costume das penitências físicas que o acompanhou até
o fim da vida. Em 1713, no seminário, em Gênova, onde se formou jesuíta com 24
anos chegava a fazer jejuns três vezes por semana. Dizia que era para refrear a
natureza e guerrear contra as tréguas do corpo. Era comum ele se açoitar
publicamente. Uma vez, em Salvador, na Bahia, Malagrida rezava o sermão na
Matriz quando lhe apontaram um homem pecador, cheio de vícios e de ‘‘ignóbeis
costumes’’. Como não conseguia, com palavras, converter o cidadão, Malagrida,
então, bateu-se com o chicote até o sangue espirrar de suas costas. Ao assistir
à dolorida cena, o pecador não se conteve: em lágrimas, ajoelhou-se nos pés do
padre, implorando com gemidos o perdão de seus crimes.
A Seguir... você vai conhecer um pouco da biográfia do peregrino que construiu
abrigos para prostitutas, fez procissões imensas, criou a Ordem do Sagrado
Coração de Jesus e denunciou padres e governadores corruptos. Para conhecer
vestígios deixados pelo religioso no Brasil, A nossa equipe percorreu parte das
trilhas de Malagrida no Piauí, Maranhão, Ceará, Paraíba e Pernambuco. Junto com
o ‘‘Aos povos de Itália não cansam meios de chegar à salvação; além-mar, pelo
contrário, inúmeras nações jazem ainda nas trevas da idolatria: vamos acudir a
essas almas desamparadas’’. Com esses argumentos, Gabriel Malagrida convenceu o
Bispo Geral dos Jesuítas a virar missionário nas Américas. Trocava os estudos
avançados de teologia e literatura pela catequese dos índios. Saiu de Lisboa e
desembarcou em São Luís do Maranhão no final do ano de 1721, mas demorou dois
anos até ser mandado para a primeira missão com os índios. Seus superiores
preferiam o erudito religioso nas salas de aula dos seminários de jesuítas e
achavam que Malagrida não estava preparado para o convívio com os arredios
nativos. Depois de muitas súplicas, o padre conseguiu realizar o antigo sonho.
Foi missionário indígena entre 1723 e 1729. Percorria as matas a pé, vestido com
a batina preta típica dos jesuítas. Não era a melhor maneira de atravessar o
interior maranhense. ‘‘Quem quer andar por essas terras tem que se proteger do
mato com roupa de couro e andar sempre a cavalo ou num burro’’, ensina José
Assunção e Silva, o Zé Doca, boiadeiro na região de Caxias, antiga Aldeias
Altas. Nesse lugar, Malagrida passou em 1726 para catequizar os Guanarés, etnia
desaparecida do Maranhão. No Século XVIII, esses índios eram numerosos e
arredios ao contato com os brancos. Já haviam sofrido com os portugueses quando
Malagrida iniciou o trabalho de catequese. Penou até conquistar a confiança dos
Guanarés. Chegaram a decidir em assembléia que matariam o padre. Só conseguiu
escapar porque na hora da excução, uma índia velha conteve o braço do nativo.
‘‘Suspende’’, gritou a mu-lher. Explicou que da última vez em que um índio
matou um padre roupeta-negra, terminou devorado por vermes. Assustados, os
Guanarés liberaram o jesuíta. ‘‘Dificilmente se reconhece o tipo humano nos
índios moradores desta região. Abrigam-se em cavernas como as feras e
alimentam-se unicamente de caça. As vezes travam-se em pelejas e então devoram
os vencidos’’, descreveu Mathias Rodrigues, um dos companheiros de apostolado
de Malagrida e que escreveu relatos do tempo em que os dois estiveram no
Brasil. O manuscrito de Rodrigues está hoje na biblioteca dos padres
boulandistas, em Bruxelas, na Bélgica, mas o professor Vitor Leonardi conseguiu
cópia microfilmada da preciosidade. ‘‘É o documento mais importante sobre
Malagrida’’, resume Vitor que nos próximos meses irá editar livro com a íntegra
do texto. Pelas linhas escritas por Mathias Rodrigues, Malagrida ainda
considerava os índios bárbaros selvagens, mas não aceitava sua escravidão.
Durante os seis anos em que conviveu com tribos do Pará e do Maranhão, o
jesuíta defendeu a tese de que as aldeias deveriam ficar longe do contato com
os portugueses. Temia pela saúde moral e física dos nativos. Ou seja, combatia
a tradição dos colonizadores que pegavam índios para trabalhar na lavoura de
cana.
Em 1729, Malagrida foi retirado da missão indígena e levado para São
Luís.
Primeiro Milagre...
A vida na capital não sossegou o padre. Em São Luís, iniciou nova etapa de sua
jornada: a de missionário popular. Ao invés de índios, cuidava agora dos
brancos, moradores da periferia. Dava aula de teologia durante a semana e aos
sábados partia para os povoados vizinhos de São Luís. Era livro grosso com as
rezas cotidianas que, por vezes, servia de travesseiro quando o religioso
adormecia no mato. Para se proteger da floresta fechada, usava um cajado, até
bem pouco tempo guardado na Itália como relíquia e apelidado de ‘‘o bordão do
peregrino’’ ‘‘Malagrida era pregador carismático’’, explica Miguel Martins
Filho, 39 anos, padre, professor de literatura e diretor do Instituto Gabriel
Malagrida, em João Pessoa. É ali que se formam todos os jesuítas brasileiros. O
que Miguel chama de carisma aparece no jeito de Malagrida atrair os ouvintes.
Nos dias santos em São Luís juntava os fiéis em frente a igreja e com um
estadandarte nas mãos, saíam todos em procissão cantada pelas ruas da cidade.
Paravam nas praças e o padre reunia o povo em volta dele. Ali, dava aula de
catecismo, representava teatralmente as principais passagens bíblicas e depois
interrogava a platéia sobre o assunto. Foi numa dessas pregações interativas em
São Luís que Malagrida fez o que os livros tratam como seu primeiro milagre.
Falava aos fiéis sobre a importância da reconciliação entre inimigos quando um
dos ouvintes contou que cometera injúria mortal contra um de seus parentes. Na
frente do antigo desafeto, contou que estava disposto a pedir perdão, mas o
homem não quis fazer as pazes. Malagrida, indignado interferiu. ‘‘Meu irmão,
não quereis perdoar ao vosso próximo para que o Senhor vos perdoe?’’. Repetiu a
pergunta várias vezes, mas como o indivíduo insistia na recusa, Malagrida
gritou atordoado: ‘‘Pecador, recusas a escutar o teu Deus que te convida a
perdoar, não tardará que prestes conta a teu juiz da tua dureza, e sofrerás então
o castigo merecido’’. Pronto, em menos de 24 horas o infeliz morreu com tiro de
mão desconhecida. O povo passou a tratar Malagrida como ‘‘o profeta’’. Carregou
esta fama para sua grande viagem missionária, iniciada em julho de 1735 do
Maranhão até a Bahia. Primeira longa parada: Piracuruca, no norte do Piauí.
‘‘Servia de igreja aí uma vil casa de farinha com quatro paredes mal pintados
por cima, cheia de morcegos. Eu mesmo dei a idéia de construir grandiosa
igreja. Todos ofereceram suas esmolas’’, conta Malagrida numa carta mandada ao
Bisbo do Algarve, em Portugal. Passados 262 anos, o templo de Piracuruca está
de pé. Seu padre, José da Silva Ribeiro, 37 anos, vive pedindo
esmolas aos moradores da cidade. Para Malagrida, o Brasil parecia uma Babilônia
de pecados. Reclamava dos casamentos fora da Igreja, se horrorizava com a
luxúria dos padres e se impressionava com o número de prostitutas. Nos oito
dias em que passava em cada cidade, o jesuíta pregava contra os amancebados,
chegava a praguejá-los. Em fevereiro de 1744, fazia missão no povoado de Várzea
Nova, no interior da Paraíba, quando descobriu homem e mulher que viviam juntos
há anos sem oficializar a união. Malagrida foi até a casa dos dois. Tentou
convencê-los a dar um ‘‘jeito cristão’’ à história. A mulher concordou, mas o
homem achou bobagem aquele falatório do padre. Malagrida renovou seus pedidos,
fez pregações públicas sobre o caso, até que num dos sermões avisou que se o
cidadão não mudasse de idéia se perderia para sempre. Em 24 horas, o homem
morreu com uma terrível dor de cabeça. Neste mesmo povoado de Várzea Nova, a
fama milagreira de Malagrida resistiu ao tempo. ‘‘Desde menina, ouço os antigos
contarem que o padre Malagrida encostou a mão numa criança que morria de febre
e ela ficou logo boa’’, diz Maria Salete da Silva, 58 anos, nascida na região.
Ali, não há mais as curas providenciais do padre, porém quem adoece é atendido
no posto de saúde de nome Gabriel Malagrida. Na frente, há uma enorme estátua
de cimento do jesuíta.
Vigários do Prazer...
Durante suas expedições, Malagrida cruzou com muitos companheiros de batina
fora da linha. Alguns chegavam a cobrar para rezar missa, outros conheciam os
prazeres da carne. Tinham mulheres e filhos, o que para Malagrida era um
escândalo sem precedentes. ‘‘Esbarrei num vigário que tinha três mancebas patentes
e vinte filhos’’, denunciava o missionário em carta aos superiores. Se o
barbudo Malagrida era exigente com os fiéis e religiosos, pior ainda era sua
auto-cobrança. Tamanha austeridade impressionava até os poucos padres corretos
das vilas por onde passava. ‘‘Depois de um sono brevíssimo, o santo padre
começava a meditação. Recitadas as horas canônicas, dirigia-se ao confessional
e daí por volta da hora décima da manhã, subia ao tablado e explicava a
doutrina cristã. Permanecia em ação de graças até a primeira hora da tarde e
até mais. Voltando a casa comia, ou poucas favas ou um pouco de leite’’,
relatava em carta João Brewer, padre de Ibiapaba, cidade onde Malagrida ficou
entre 5 e 17 de fevereiro de 1747. O lugar, chama-se hoje Viçosa do Ceará. Lá,
no altar da igreja matriz ainda existe uma imagem de Gabriel Malagrida, de
quatro palmos de altura. ‘‘Ele está vestido de São Francisco de Assis porque a
imagem foi mandada para reforma e o artista adorava os franciscanos’’, explica
o monsenhor Francisco das Chagas Martins, pároco da igreja há 50 anos. ‘‘Tudo
aqui é antigo. Nossa igreja é a mais velha do Ceará. Foi fundada em
1602’’.
Madalenas...
O maior tormento de Malagrida eram as ‘‘mulheres da vida’’. Considerava a
prostituição um dos problemas mais graves da colônia. ‘‘Naquele tempo, se uma
menina perdia a virgindade, caía em desgraça na sociedade e acabava entrando
para a prostituição. Malagrida sonhava em fazer alguma coisa por essas
mulheres’’, conta Ilário Govoni, jesuíta italiano, morador de Terezina e autor
do único livro publicado no Brasil sobre Malagrida. Chama-se O Missionário
Popular do Nordeste. O desafio de ‘‘endireitar’’ prostitutas perseguiu
Malagrida até 1742, quando conseguiu financiamento para construir o Convento do
Sagrado Coração de Jesus em Igarassu, em Pernambuco. Ali, abrigou 40 mulheres
da vida, desejosas de conversão. Saíram em romaria de João Pessoa até a cidade
pernambucana. ‘‘Este asilo de Madalenas arrependidas tinha âmbito regional. Às
que não podiam casar, por causa de impedimentos ou delas próprias ou dos homens
com quem viviam, por já serem casados, abriam-se-lhes as portas desta casa,
onde ficavam ao abrigo da miséria e de recaídas’’, escreveu o historiador
Serafim Leite, no livro a História Eclesiástica no Brasil. ‘‘Hoje só aceitamos
donzelas. Todas nós somos donzelas’’, apressa-se em explicar Maria Medeiros de
Paula, 48 anos, e atual diretora do Convento. É freira desde os 17 anos, nunca
teve namorado e não gosta muito de falar do passado de pecado das fundadoras da
instituição. ‘‘Hoje, só entra na Ordem do Coração de Jesus moça virgem’’. A 60
km dali, em João Pessoa, num outro endereço com placa de Malagrida, perder a
virgindade é ganhar a vida. Na rua Gabriel Malagrida, no centro da capital
paraibana, funciona o baixo meretrício da cidade. ‘‘Esse Malagrida era dos
nossos. Nosso santo protetor’’, brinca dona Lucila Martins, 59 anos, dona de um
dos bordéis da rua.
O Triste Fim...
O triste fim do missionário em janeiro de 1754 Gabriel Malagrida embarcou para
Lisboa certo de que conseguiria mais recursos para suas obras no Brasil.
Enganou-se, embarcou para a morte. Famoso na corte por seu carisma de pregador,
Malagrida era o confessor da rainha, o que despertava ciúmes de poderosos
emergentes como Sebastião José de Carvalho, o Marquês de Pombal. Quando a
rainha morreu, em 1754, Pombal virou primeiro ministro de Dom Jose I e iniciou
perseguição sistemática contra Malagrida. Irritou-se profundamente quando, após
o terrível terremoto de Lisboa de 1755, o religioso escreveu panfletos
associando a tragédia às maldades da corte. Pombal não se conteve. Conseguiu
que Malagrida fosse mandado para a cidade de Setúbal. Atentado em 3 de setembro
de 1758, o rei D. José sofreu atentado quando voltava de uma farra noturna.
Pombal arranjou testemunhas para envolver Malagrida no caso. No dia 9 de
janeiro de 1759, Malagrida foi preso por crime de lesa majestade. Ficou numa
cadeia imunda, onde usava tinta de paredes para escrever dois textos
religiosos: um sobre a vida de Sant’Ana e outro sobre o retorno do Anti-Cristo.
Malagrida acreditava que o apocalipse aconteceria em 1999. O incansável Pombal
aproveitou para denunciar Malagrida à Inquisição como herege, mas os próprios
juízes do Santo Ofício admitiram que não havia razões para condenar o religioso.
Pombal, então, destituiu o presidente do Tribunal e nomeou seu próprio irmão,
Paulo de Carvalho. A outra questão era a guerra guaranítica, travada no Sul do
Brasil. Os jesuítas se aliaram aos índios contra os portugueses que queriam
ampliar as fronteiras do país. Isso tudo não culminou apenas na morte da
Malagrida. Em 1759, Pombal expulsou os jesuítas dos domínios portugueses. Foi
mais longe. Em 1773, conseguiu do Papa Clemente XIV, a extinção da Companhia de
Jesus em todo o mundo. A Companhia só voltou a existir em 1814 e os jesuítas só
retornaram ao Brasil no final do século XIX.
Essa é a História de Gabriel Malagrida o nosso Saudoso Caboclo das 7
Encruzilhadas.
Saravá Umbanda
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