segunda-feira, 24 de junho de 2013

OS ANIMAIS NO XAMANISMO KATUKINA - Parte 1


Edilene Coffaci de Lima
Depto de Antropologia/UFPR
Doutoranda no PPGAS/USP

Introdução

Esta comunicação[1] pretende ser uma primeira aproximação ao xamanismo katukina[2], feita através das referências aos animais na prática e no discurso xamânico. Referências estas que estão presentes tanto nos relatos sobre a iniciação às atividades xamânicas quanto sobre as causas das doenças, boa parte delas decorrente do desrespeito aos tabus alimentares. Antes de iniciar, entretanto, é necessário dizer que há entre os Katukina apenas rezadores (shoitiya) – treze, no total. Atualmente não há mais xamãs, o último deles, Tobi, morreu há 5 anos na aldeia do rio Gregório. Conheci aldeias sem xamãs e, por isso, abordo aqui apenas a iniciação e atuação dos shoitiya.[3] Começo expondo a diferenciação entre xamãs e rezadores; em seguida, abordo a iniciação às atividades xamânicas e, por fim, os tabus alimentares e suas vinculações às causas das doenças.

Xamãs e rezadores

Primeiramente, xamãs e rezadores diferenciam-se no tipo de assistências que podem oferecer: coletivas, no primeiro caso; individuais, no segundo – embora o xamã possa também realizar consultas individuais, mas não o contrário. No que diz respeito, às assistências coletivas, os xamãs poderosos podem com seus cantos atrair a caça para a aldeia: queixadas, porcos e macacos – atraídos com canções apropriadas para cada espécie. Saber os cantos que atraem os animais, entretanto, não faz de um homem um xamã. Um dos rezadores conhecia e permitiu que eu gravasse dois desses cantos, um para atrair queixadas e outro para macacos. Mas o fato dele conhecê-los e poder entoá-los não tinha qualquer relação com a eficácia deles, pois apesar dele saber a letra e a entonação corretas – que aprendeu apenas ouvindo o falecido xamã – , desconhecia os segredos específicos da comunicação dos xamãs com os animais.[4] E, se é possível expressar-se assim, os animais não o ouviam.
Apenas os xamãs sabem curar e vingar feitiços (ra’o)[5], ainda que estes feitiços sejam direcionados individualmente – entre os Katukina as acusações, quase sempre, são feitas aos Yawanawa. No mais, fazendo uso do ayahuasca (honi), os poderes dos xamãs permitem também viagens cósmicas, com seu corpo transmutado em bichos (jaguar, principalmente), nas quais aprendem mais e mais acerca do mundo sobrenatural, ganhando poderes renovados que, pretende-se, devem ser usados em benefício da coletividade.
Já no que diz respeito às assistências individuais, a diferença sempre salientada é aquela das técnicas. Os xamãs, por sucção, podem extrair objetos patógenos que afligem seus pacientes. Estes objetos são de vários tipos: chumaços de cabelo (vo’o shoko), pontas de lança de taboca (paka) e pedaços de ossos de animais (shao) ou mesmo pequenas pedras (rome). Todos eles enviados por feitiço (ra’o), que somente ele pode curar. Os atributos dos rezadores, como eles próprios salientam, são bem mais modestos.
Aos rezadores cabe o tratamento, individual, de todos os distúrbios fisiológicos, exceto aqueles causados por feitiço. Estes distúrbios fisiológicos incluem gripe, coriza, dores no corpo, dores de cabeça, febre, vômitos e diarréia. Várias pessoas doentes consultam um rezador antes de dirigirem-se ao agente de saúde da aldeia ou ao hospital de Cruzeiro do Sul à procura de tratamento médico. Isto porque, embora os distúrbios fisiológicos atormentem o corpo, eles podem ter suas causas originadas fora dele. As causas mais freqüentemente apontadas são: desrespeito a alguns dos tabus alimentares e a presença de espíritos de pessoas mortas tentando atrair pessoas queridas para junto de si. Como há variação no grau de conhecimento dos rezadores não é indicado aos homens pouco instruídos no domínio xamânico tratarem as causas do segundo tipo.




[1] Este trabalho é parte da pesquisa que desenvolvo com vistas ao doutoramento no PPGAS/USP. A pesquisa com os Katukina iniciou-se em 1991, mas os dados aqui apresentados foram obtidos, quase que majoritariamente, nos últimos 6 meses que estive em campo, em 1997 e 1998, com financiamento da FAPESP.
[2] Os Katukina falam uma língua da família lingüística pano e têm uma população de 320 indivíduos, distribuída em dois grupos locais: TI do rio Campinas e TI do rio Gregório, no estado do Acre.
[3] Cabe dizer que shoitiya é apenas uma das denominações possíveis para “rezador”, as outras são: koshoitiya, kosa e hawe vanaya. Shoiti e koshoiti, segundo os Katukina, são simplesmente palavras sinônimas com as quais eles designam os cantos de cura, que acrescidas do sufixo de posse ya, denominariam os rezadores, donde teríamos a tradução “aquele que tem os cantos de cura”. Não obtive tradução para o termo kosa e hawe vanaya pode ser traduzido como “aquele que tem a palavra” (hawe, o que/aquele; vana, palavra, conversa; ya, sufixo de posse).
[4] Já seus próprios cantos de cura, ele não permitiu que eu gravasse.
[5] Os diagnósticos de feitiço são frequentes e, como não têm mais xamãs, para tentar curá-los os katukina têm procurado Armédio, um xamã Jaminawa-Arara residente na cidade de Cruzeiro do Sul. Armédio é neto de Crispim, o xamã de que Carneiro da Cunha (1998) falou em um artigo recente.

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