Edilene Coffaci de Lima
Depto de
Antropologia/UFPR
Doutoranda
no PPGAS/USP
Introdução
Esta
comunicação[1] pretende
ser uma primeira aproximação ao xamanismo katukina[2],
feita através das referências aos animais na prática e no discurso xamânico.
Referências estas que estão presentes tanto nos relatos sobre a iniciação às
atividades xamânicas quanto sobre as causas das doenças, boa parte delas
decorrente do desrespeito aos tabus alimentares. Antes de iniciar, entretanto,
é necessário dizer que há entre os Katukina apenas rezadores (shoitiya) – treze, no total. Atualmente
não há mais xamãs, o último deles, Tobi,
morreu há 5 anos na aldeia do rio Gregório. Conheci aldeias sem xamãs e, por
isso, abordo aqui apenas a iniciação e atuação dos shoitiya.[3]
Começo expondo a diferenciação entre xamãs e rezadores; em seguida, abordo a
iniciação às atividades xamânicas e, por fim, os tabus alimentares e suas
vinculações às causas das doenças.
Xamãs e rezadores
Primeiramente,
xamãs e rezadores diferenciam-se no tipo de assistências que podem oferecer:
coletivas, no primeiro caso; individuais, no segundo – embora o xamã possa
também realizar consultas individuais, mas não o contrário. No que diz
respeito, às assistências coletivas, os xamãs poderosos podem com seus cantos
atrair a caça para a aldeia: queixadas, porcos e macacos – atraídos com canções
apropriadas para cada espécie. Saber os cantos que atraem os animais,
entretanto, não faz de um homem um xamã. Um dos rezadores conhecia e permitiu que
eu gravasse dois desses cantos, um para atrair queixadas e outro para macacos.
Mas o fato dele conhecê-los e poder entoá-los não tinha qualquer relação com a
eficácia deles, pois apesar dele saber a letra e a entonação corretas – que
aprendeu apenas ouvindo o falecido xamã – , desconhecia os segredos específicos
da comunicação dos xamãs com os animais.[4] E,
se é possível expressar-se assim, os animais não o ouviam.
Apenas os xamãs
sabem curar e vingar feitiços (ra’o)[5],
ainda que estes feitiços sejam direcionados individualmente – entre os Katukina
as acusações, quase sempre, são feitas aos Yawanawa. No mais, fazendo uso do
ayahuasca (honi), os poderes dos
xamãs permitem também viagens cósmicas, com seu corpo transmutado em bichos
(jaguar, principalmente), nas quais aprendem mais e mais acerca do mundo
sobrenatural, ganhando poderes renovados que, pretende-se, devem ser usados em
benefício da coletividade.
Já no que diz
respeito às assistências individuais, a diferença sempre salientada é aquela
das técnicas. Os xamãs, por sucção, podem extrair objetos patógenos que afligem
seus pacientes. Estes objetos são de vários tipos: chumaços de cabelo (vo’o shoko), pontas de lança de taboca
(paka) e pedaços de ossos de animais (shao)
ou mesmo pequenas pedras (rome). Todos
eles enviados por feitiço (ra’o), que
somente ele pode curar. Os atributos dos rezadores, como eles próprios
salientam, são bem mais modestos.
Aos rezadores
cabe o tratamento, individual, de todos os distúrbios fisiológicos, exceto
aqueles causados por feitiço. Estes distúrbios fisiológicos incluem gripe,
coriza, dores no corpo, dores de cabeça, febre, vômitos e diarréia. Várias
pessoas doentes consultam um rezador antes de dirigirem-se ao agente de saúde
da aldeia ou ao hospital de Cruzeiro do Sul à procura de tratamento médico.
Isto porque, embora os distúrbios fisiológicos atormentem o corpo, eles podem
ter suas causas originadas fora dele. As causas mais freqüentemente apontadas
são: desrespeito a alguns dos tabus alimentares e a presença de espíritos de
pessoas mortas tentando atrair pessoas queridas para junto de si. Como há
variação no grau de conhecimento dos rezadores não é indicado aos homens pouco
instruídos no domínio xamânico tratarem as causas do segundo tipo.
[1]
Este trabalho é parte da pesquisa que desenvolvo com vistas ao doutoramento no
PPGAS/USP. A pesquisa com os Katukina iniciou-se em 1991, mas os dados aqui
apresentados foram obtidos, quase que majoritariamente, nos últimos 6 meses que
estive em campo, em 1997 e 1998, com financiamento da FAPESP.
[2] Os
Katukina falam uma língua da família lingüística pano e têm uma população de
320 indivíduos, distribuída em dois grupos locais: TI do rio Campinas e TI do
rio Gregório, no estado do Acre.
[3] Cabe
dizer que shoitiya é apenas uma das
denominações possíveis para “rezador”, as outras são: koshoitiya, kosa e hawe vanaya. Shoiti e koshoiti, segundo os Katukina, são simplesmente palavras
sinônimas com as quais eles designam os cantos de cura, que acrescidas do
sufixo de posse ya, denominariam os
rezadores, donde teríamos a tradução “aquele que tem os cantos de cura”. Não
obtive tradução para o termo kosa e hawe vanaya pode ser traduzido como
“aquele que tem a palavra” (hawe, o
que/aquele; vana, palavra, conversa; ya, sufixo de posse).
[4] Já
seus próprios cantos de cura, ele não permitiu que eu gravasse.
[5] Os
diagnósticos de feitiço são frequentes e, como não têm mais xamãs, para tentar
curá-los os katukina têm procurado Armédio, um xamã Jaminawa-Arara residente na
cidade de Cruzeiro do Sul. Armédio é neto de Crispim, o xamã de que Carneiro da
Cunha (1998) falou em um artigo recente.
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