Edilene Coffaci de Lima
Depto de Antropologia/UFPR
Doutoranda no PPGAS/USP
Os segredos das cobras
Seja para
tornar-se um romeya (xamã) ou um shoitiya (rezador/curador), um homem
deve encontrar uma cobra que lhe revela os segredos da cura. Caçando, a caminho
de casa ou mariscando, a cobra aparece no caminho de um homem, que sente
estranhas sensações em seu corpo – mudança de cheiro (o corpo cheira cobra),
turvamento da visão, tonturas e calafrios. Estes encontros com as cobras, são
interpretados como eleição, uma indicação de que a pessoa foi escolhida para
deter os conhecimentos de cura. O tamanho da cobra (muito grande/grande) parece
determinar a quantidade de segredos que pode revelar e se um homem poderá atuar
como xamã (romeya) ou rezador (shoitiya).[1]
Contudo, a
visão da “cobra grande” é controversa entre os próprios rezadores Katukina:
alguns afirmam não tê-la visto realmente, mas apenas sentido sua presença. Este
é o caso de Mekõ que afirmou não ter visto a cobra, viu apenas a canarana
subindo entre as águas – supostamente levantada pela cobra. Foi o suficiente:
as alterações produzidas em seu corpo indicavam que havia sido eleito. Mani, um
rezador mais experimente e ativo do que Mekõ, afirma também não ter estado
diante de uma cobra, pelo menos não de uma cobra viva. Durante uma caçada, ele
encontrou pelo caminho a carcaça de uma grande jibóia, morta. Do mesmo modo
como Mekõ, Mani afirma ter tido sensações nunca antes experimentadas: tremores
e calafrios e, especialmente, luzes invadiam sua visão. Ambos concordam que o
encontro com a cobra é fundamental no processo de eleição de um rezador – ainda
que o encontro de ambos com uma não tenha sido efetivo, como se pode a
princípio imaginar, tamanha a ênfase que eles próprios dão ao fato.
Para
compreendermos o nexo estabelecido pelos Katukina entre as cobras e o
conhecimento xamânico é necessário recorrermos a um mito katukina que narra a
origem da vida breve. Neste mito os Katukina contam como seus ancestrais
ouviram um homem chamá-los, falando que se fossem ao encontro dele, receberiam
uma “pedra” que os tornariam imortais. O homem os chama uma, duas, três, várias
vezes e os Katukina não atendem ao seu chamado, porque não ouvem direito e não
dão muita atenção. Depois de algum tempo, os Katukina decidem mandar uma
criança ao encontro do tal homem. Entretanto, ele se recusa a entregar a
“pedra” à criança, com receio de que ela não reconhecesse seu valor e a
desprezasse. Irritado, este nawa
sentenciou: “já que vocês não quiseram a minha pedra, você não vão ser muitos,
pois minha pedra ia ajudar a aumentar a população de vocês. Mas vocês perderam
[a oportunidade]. Agora, quando um morre, outro nasce, assim vocês vão viver a
vida inteira e não vai aumentar a população de vocês”. A “pedra” capaz de
imortalizar os homens acabou ficando em poder das cobras, por isso elas trocam
a pele, sem nunca morrerem. Os Katukina dizem: “se tivéssemos pego esta pedra,
a gente ficava bem velhinho, trocava o cabelo, a pele e ficava novo”. Aos
Katukina restou apenas a perspectiva de uma “ressurreição celeste”[2],
já que os mortos, ao adentrarem o céu, adquirem uma nova pele, para que tenham um
nova vida – desta vez, eterna – e não sintam saudades.
Além das
cobras, uma espécie de lagarto e uma árvore conhecida regionalmente como
mulateiro também obtiveram o rome. As
cobras, o mulateiro e o lagarto asseguraram a vida eterna e a troca de pele (casca)
periódica entre eles marca a excepcional capacidade de renovação e
rejuvenescimento. A precariedade e provisoriedade da vida katukina, parece
possível supor, é contornada pelos xamãs e rezadores que obtêm parte de seus
conhecimentos de cura por intermédio das cobras, detentores do rome e, por isso, imortais.
Os desenhos
labirínticos do couro da cobra, muito apreciados pelos Katukina[3],
são também relacionados ao conhecimento xamânico. As pessoas costumam dizer:
“tal cobra tem desenho bonito, tem rome”
(rono keneya romeya). Beleza e
conhecimento aparecem então intimamente associados.[4]
As alterações
sensoriais – olfato e visão, principalmente – diante de uma grande serpente
seriam indicativas de que ela “jogou” o rome
em um homem e o rome penetrou em seu corpo,
o que o capacita, de alguma maneira, a estabelecer relações sobrenaturais. Os
xamãs teriam rome em grandes
quantidades, o que não só explica a tradução de sua designação vernácula como
sua superioridade em relação aos rezadores, que o têm em menor quantidade.
A permanência
do rome no corpo, entretanto, não é
definitiva, deve ser garantida com uma rotina sem sobressaltos e uma dieta
alimentar. No que diz respeito à rotina, a principal precaução a ser tomada é
evitar sustos, emoções repentinas. O latido inesperado de um cachorro ou mesmo
o grito de uma criança podem dissipar o rome.
Quanto à dieta, os aprendizes e também os rezadores experientes devem evitar os
alimentos doces (vata), como açúcar,
mamão, cana-de-açúcar e algumas qualidades de banana.
A eleição ao
xamanismo independe do desejo ou da aspiração dos indivíduos, uma vez que o
contato com o sobrenatural, nesta etapa, não é uma prerrogativa do desejo ou da
decisão voluntária do indivíduo.
Após o encontro
com a cobra, um homem passa a ter sonhos de revelação, os segredos de cura são
aprendidos. Os rezadores com os quais pude discutir estes assuntos disseram-me
que sonharam com um homem que lhes oferecia ayahuasca ou rapé para consumirem
juntos. Em seguida, este homem dava-lhes uma mulher com a qual se uniam e que,
desde então, sempre os acompanhava, ensinando-lhes a identificar as doenças e
suas respectivas curas. Porém, apenas um dos rezadores, Mani, identificou
claramente Rono Yuxin como sua
“esposa”. Mani, que reza há quase 30 anos, afirmou que Rono Yuxin é muito bonita, deslumbrante, e ora se parece com sua
primeira mulher ora com sua mulher atual, embora não seja nem uma nem outra.
No primeiro
sonho, em um cenário de trevas, estes homens dizem ter visto muitos doentes:
pessoas prostradas nas redes, com febre, diarréia, tremores, tosse, vômitos. A
mulher, encarnação de rono yuxin
(espírito da serpente), ensinava-lhes então as palavras mágicas que deveriam
ser ditas e que eles passavam a repetir uma a uma. Pouco tempo depois, os
doentes estavam bons: sentavam-se, bebiam água, comiam, penteavam os cabelos –
o que indicava que já estavam curados.
Um sonho como
este sela definitivamente a eleição para tornar-se um shoitiya. A partir de então, o homem procura um rezador mais
experiente que possa iniciá-lo nos segredos e na prática das rezas, além de
passar a consumir quantidades maiores de rapé que estimulam novos sonhos com o
“espírito da serpente”, com o qual deve aprender novas rezas.
Apenas um dos
rezadores, Ne’e, afirma não ter feito sua iniciação desta maneira. Ao invés de
ter visto uma cobra, ele teria sido picado por uma (no caso, uma imi rono, “cobra sangue”, numa tradução
literal) e, durante sua recuperação, teria sido eleito por intermédio dos
sonhos.[5]
Mas nem todos
que se depararam com uma grande cobra e tiveram sonhos indicativos de sua
própria eleição tornaram-se shoitiya.
É difícil saber quantos foram eleitos e não atenderam aos chamados, i.e., não
se empenharam eles próprios em aprofundar os conhecimentos de cura. Se um homem
encontra uma cobra, tem um primeiro sonho, mas não se empenha em aprofundar
seus conhecimentos, o rome é perdido.
Ninguém precisa saber.
Entretanto, há
casos de recusa à eleição que são bem mais dramáticos. Kako, um jovem rapaz,
foi mariscar com tingui, acompanhado de muitas outras pessoas, em um igarapé na
aldeia do rio Gregório. Todos foram embora, mas ele decidiu permanecer mais um
pouco, sozinho na mata, a procura de algum peixe que ainda aparecesse. Em cima
de um balseiro caído no igarapé, ele viu passar lentamsente uma cobra
gigantesca. Olhou-a fixamente, viu seu corpo deslizando sob as águas. De
repente, começou a sentir tremores e calafrios, turvamento na vista, o odor de
seu corpo estava alterado – sensações indicativas de sua eleição. Sem saber
como controlar-se, Kako desceu do balseiro e foi ao encontro da cobra, que a
esta altura já estava imóvel. Ele então pegou seu terçado e desferiu vários
golpes na cobra. Correu para sua casa, alarmado, sem saber se a tinha matado.
Lá chegando contou o acontecido ao seu pai, que lhe explicou que a cobra
deveria estar convidando-o para tornar-se um rezador. Se ele não quisesse,
deveria desculpar-se e fazer algum pedido (para que tivesse força para fazer
roçados ou sorte na caça, por exemplo), jamais deveria tê-la machucado. Na
mesma noite, Kako sonhou que sofria um acidente. Alguns dias se passaram e o
acidente aconteceu. Sozinho pela mata, caçando, Kako tropeçou na raiz de uma
árvore, caiu desajeitadamente e a espingarda detonou, acertando seu braço.
Socorrido pelos missionários da MNTB, levado para a cidade de Tarauacá, Kako
teve o braço direito amputado. A cobra enviara-lhe o castigo.
Não há qualquer
problema em se recusar a seguir a carreira de shoitiya, em declinar ao chamado de rono yuxin, mas aqueles que a atacam são vingados. Os Katukina não
matam jibóias (mana rono), sucuris e
outras cobras de grande porte, pois acreditam que se assim fizerem, terão de
volta a vingança da cobra morta que lhes poderá causar a morte ou deficiências
físicas irreversíveis.[6]
Aqueles que aceitam
de bom-grado o contato sobrenatural e desejam mesmo seguir uma carreira de
rezador, devem aprofundar seus conhecimentos seja solitariamente ou com a ajuda
de rezadores mais experientes ou ambas as formas ao mesmo tempo, como é mais
comum. Se solitariamente, um homem passa a consumir rapé todas as noites, a fim
de estimular a ocorrência de sonhos com Rono
Yuxin, o espírito da serpente, que o instruí sobre as doenças e os cantos
de cura. Na companhia de um rezador mais experiente, o aprendiz consome também
rapé e, algumas vezes, ayahuasca[7], e
aprende com ele os cantos apropriados para cada doença e também os sintomas que
devem ser observados nos paciente. De uma maneira mais informal, um aprendiz
pode também acompanhar um rezador mais experiente sempre que este for consultar
um paciente.
[1] O
tema da cobra como detentora dos conhecimentos xamânicos é recorrente entre os
grupos indígenas da família lingüística pano. Entre as etapas para tornar-se
xamã entre os Yaminawa peruanos, Townsley (1988:133) menciona que um homem deve
comer a língua e os excrementos de uma anaconda (o mais poderoso mestre dos
poderes xamânicos). Os Yaminawa da fronteira brasileira dizem que para alçar a
condição de xamã, um homem deve, entre outras coisas, “chupar a língua de uma ronoá (sucuri), previamente capturada e
embriagada com shori (ayahuasca)
(Calávia Saez 1995:107-108). Já os Kaxinawá afirmam que o preparo e as canções
do ayahuasca foram aprendidos com a sucuri (Lagrou 1996). Janet Siskind
(1973:165-166) observou que entre os Sharanawa um aprendiz de xamã teve seu
corpo esfregado com a língua de uma cobra e comeu o coração de uma Boa constrictor.
[2]
Empresto a expressão de Viveiros de Castro (1986:446), que a usou para tratar
também da relações troca de pele/imortalidade entre os Tupi.
[3]
Mas não só o desenho do couro dos boídeos são apreciados, também de algumas
cobras peçonhentas que não estão relacionadas ao xamanismo. Certa vez, eu e
duas mulheres encontramos uma cobra (que parecia ser uma jararaca) no caminho.
Mais tarde, uma das mulheres (que tinha matado a cobra) contou o acontecido
para um homem e querendo descrevê-la para que ele pudesse identificá-la, dizia
insistentemente: kene roapa kuin,
i.e., “desenho muito bonito”.
[4] Em
outros grupos pano, há uma estreita associação entre beleza, conhecimento
xamânico e visões. Entre os Shipibo-Conibo (Gebhart-Sayer 1986) e os Kaxinawá
(Lagrou 1996), as belas visões são expressas nos desenhos geométricos, pelas
mulheres, que os elaboram a partir dos cantos dos xamãs. Nos dias de hoje os
Katukina parecem ter restringido as elaborações de suas visões aos cantos. De
todo modo, os desenhos geométricos talvez tenham existido em maior quantidade no
passado, pois são ainda encontrados nas peneiras, peças de cerâmica e nas
pinturas corporais.
[5]
Montagner Melatti (1985) fala que os xamãs marubo são iniciados após uma doença
causada por agentes sobrenaturais. Ela fornece uma pequena biografia dos xamãs
que conheceu, e, entre eles, consta que um se tornou xamã após ter visto uma
sucuriju (:407) e outro após ser picado por uma surucucu (:415). Entre os
Sharanawa, Siskind também menciona o caso de um rapaz que recebeu os
ensinamentos para tornar-se xamã após ter sido picado por uma cobra (1973:165)
[6]
Entre os Kaxinawá, parentes lingüísticos dos Katukina, a sucuri só é morta para
que as mulheres aprendam os desenhos que fazem em objetos (redes, cerâmicas) e
no próprio corpo. Eles dizem que matar uma sucuri por qualquer outro motivo
seria colocar a vida em risco, pois “a cobra é pajé” (Lagrou 1996:215).
[7]
Embora os Katukina digam que podem tomar ayahuasca para estimular “encontros”
com Rono yuxin, o mais comum é o uso
do rapé. No mais, os rezadores Katukina não usam ayahuasca nas sessões de cura.
Parece-me que os romeya usavam o
ayahuasca com mais frequência. Segundo Erikson (1993:48), por toda a área pano,
o tabaco é mais utilizado como alucinógeno xamânico do que a ayahuasca.
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