terça-feira, 25 de junho de 2013

OS ANIMAIS NO XAMANISMO KATUKINA - Parte 2

Edilene Coffaci de Lima
Depto de Antropologia/UFPR
Doutoranda no PPGAS/USP

Os segredos das cobras

Seja para tornar-se um romeya (xamã) ou um shoitiya (rezador/curador), um homem deve encontrar uma cobra que lhe revela os segredos da cura. Caçando, a caminho de casa ou mariscando, a cobra aparece no caminho de um homem, que sente estranhas sensações em seu corpo – mudança de cheiro (o corpo cheira cobra), turvamento da visão, tonturas e calafrios. Estes encontros com as cobras, são interpretados como eleição, uma indicação de que a pessoa foi escolhida para deter os conhecimentos de cura. O tamanho da cobra (muito grande/grande) parece determinar a quantidade de segredos que pode revelar e se um homem poderá atuar como xamã (romeya) ou rezador (shoitiya).[1]

Contudo, a visão da “cobra grande” é controversa entre os próprios rezadores Katukina: alguns afirmam não tê-la visto realmente, mas apenas sentido sua presença. Este é o caso de Mekõ que afirmou não ter visto a cobra, viu apenas a canarana subindo entre as águas – supostamente levantada pela cobra. Foi o suficiente: as alterações produzidas em seu corpo indicavam que havia sido eleito. Mani, um rezador mais experimente e ativo do que Mekõ, afirma também não ter estado diante de uma cobra, pelo menos não de uma cobra viva. Durante uma caçada, ele encontrou pelo caminho a carcaça de uma grande jibóia, morta. Do mesmo modo como Mekõ, Mani afirma ter tido sensações nunca antes experimentadas: tremores e calafrios e, especialmente, luzes invadiam sua visão. Ambos concordam que o encontro com a cobra é fundamental no processo de eleição de um rezador – ainda que o encontro de ambos com uma não tenha sido efetivo, como se pode a princípio imaginar, tamanha a ênfase que eles próprios dão ao fato.
Para compreendermos o nexo estabelecido pelos Katukina entre as cobras e o conhecimento xamânico é necessário recorrermos a um mito katukina que narra a origem da vida breve. Neste mito os Katukina contam como seus ancestrais ouviram um homem chamá-los, falando que se fossem ao encontro dele, receberiam uma “pedra” que os tornariam imortais. O homem os chama uma, duas, três, várias vezes e os Katukina não atendem ao seu chamado, porque não ouvem direito e não dão muita atenção. Depois de algum tempo, os Katukina decidem mandar uma criança ao encontro do tal homem. Entretanto, ele se recusa a entregar a “pedra” à criança, com receio de que ela não reconhecesse seu valor e a desprezasse. Irritado, este nawa sentenciou: “já que vocês não quiseram a minha pedra, você não vão ser muitos, pois minha pedra ia ajudar a aumentar a população de vocês. Mas vocês perderam [a oportunidade]. Agora, quando um morre, outro nasce, assim vocês vão viver a vida inteira e não vai aumentar a população de vocês”. A “pedra” capaz de imortalizar os homens acabou ficando em poder das cobras, por isso elas trocam a pele, sem nunca morrerem. Os Katukina dizem: “se tivéssemos pego esta pedra, a gente ficava bem velhinho, trocava o cabelo, a pele e ficava novo”. Aos Katukina restou apenas a perspectiva de uma “ressurreição celeste”[2], já que os mortos, ao adentrarem o céu, adquirem uma nova pele, para que tenham um nova vida – desta vez, eterna – e não sintam saudades.
Além das cobras, uma espécie de lagarto e uma árvore conhecida regionalmente como mulateiro também obtiveram o rome. As cobras, o mulateiro e o lagarto asseguraram a vida eterna e a troca de pele (casca) periódica entre eles marca a excepcional capacidade de renovação e rejuvenescimento. A precariedade e provisoriedade da vida katukina, parece possível supor, é contornada pelos xamãs e rezadores que obtêm parte de seus conhecimentos de cura por intermédio das cobras, detentores do rome e, por isso, imortais.
Os desenhos labirínticos do couro da cobra, muito apreciados pelos Katukina[3], são também relacionados ao conhecimento xamânico. As pessoas costumam dizer: “tal cobra tem desenho bonito, tem rome” (rono keneya romeya). Beleza e conhecimento aparecem então intimamente associados.[4]
As alterações sensoriais – olfato e visão, principalmente – diante de uma grande serpente seriam indicativas de que ela “jogou” o rome em um homem e o rome penetrou em seu corpo, o que o capacita, de alguma maneira, a estabelecer relações sobrenaturais. Os xamãs teriam rome em grandes quantidades, o que não só explica a tradução de sua designação vernácula como sua superioridade em relação aos rezadores, que o têm em menor quantidade.
A permanência do rome no corpo, entretanto, não é definitiva, deve ser garantida com uma rotina sem sobressaltos e uma dieta alimentar. No que diz respeito à rotina, a principal precaução a ser tomada é evitar sustos, emoções repentinas. O latido inesperado de um cachorro ou mesmo o grito de uma criança podem dissipar o rome. Quanto à dieta, os aprendizes e também os rezadores experientes devem evitar os alimentos doces (vata), como açúcar, mamão, cana-de-açúcar e algumas qualidades de banana.
A eleição ao xamanismo independe do desejo ou da aspiração dos indivíduos, uma vez que o contato com o sobrenatural, nesta etapa, não é uma prerrogativa do desejo ou da decisão voluntária do indivíduo.
Após o encontro com a cobra, um homem passa a ter sonhos de revelação, os segredos de cura são aprendidos. Os rezadores com os quais pude discutir estes assuntos disseram-me que sonharam com um homem que lhes oferecia ayahuasca ou rapé para consumirem juntos. Em seguida, este homem dava-lhes uma mulher com a qual se uniam e que, desde então, sempre os acompanhava, ensinando-lhes a identificar as doenças e suas respectivas curas. Porém, apenas um dos rezadores, Mani, identificou claramente Rono Yuxin como sua “esposa”. Mani, que reza há quase 30 anos, afirmou que Rono Yuxin é muito bonita, deslumbrante, e ora se parece com sua primeira mulher ora com sua mulher atual, embora não seja nem uma nem outra.
No primeiro sonho, em um cenário de trevas, estes homens dizem ter visto muitos doentes: pessoas prostradas nas redes, com febre, diarréia, tremores, tosse, vômitos. A mulher, encarnação de rono yuxin (espírito da serpente), ensinava-lhes então as palavras mágicas que deveriam ser ditas e que eles passavam a repetir uma a uma. Pouco tempo depois, os doentes estavam bons: sentavam-se, bebiam água, comiam, penteavam os cabelos – o que indicava que já estavam curados.
Um sonho como este sela definitivamente a eleição para tornar-se um shoitiya. A partir de então, o homem procura um rezador mais experiente que possa iniciá-lo nos segredos e na prática das rezas, além de passar a consumir quantidades maiores de rapé que estimulam novos sonhos com o “espírito da serpente”, com o qual deve aprender novas rezas.
Apenas um dos rezadores, Ne’e, afirma não ter feito sua iniciação desta maneira. Ao invés de ter visto uma cobra, ele teria sido picado por uma (no caso, uma imi rono, “cobra sangue”, numa tradução literal) e, durante sua recuperação, teria sido eleito por intermédio dos sonhos.[5]
Mas nem todos que se depararam com uma grande cobra e tiveram sonhos indicativos de sua própria eleição tornaram-se shoitiya. É difícil saber quantos foram eleitos e não atenderam aos chamados, i.e., não se empenharam eles próprios em aprofundar os conhecimentos de cura. Se um homem encontra uma cobra, tem um primeiro sonho, mas não se empenha em aprofundar seus conhecimentos, o rome é perdido. Ninguém precisa saber.
Entretanto, há casos de recusa à eleição que são bem mais dramáticos. Kako, um jovem rapaz, foi mariscar com tingui, acompanhado de muitas outras pessoas, em um igarapé na aldeia do rio Gregório. Todos foram embora, mas ele decidiu permanecer mais um pouco, sozinho na mata, a procura de algum peixe que ainda aparecesse. Em cima de um balseiro caído no igarapé, ele viu passar lentamsente uma cobra gigantesca. Olhou-a fixamente, viu seu corpo deslizando sob as águas. De repente, começou a sentir tremores e calafrios, turvamento na vista, o odor de seu corpo estava alterado – sensações indicativas de sua eleição. Sem saber como controlar-se, Kako desceu do balseiro e foi ao encontro da cobra, que a esta altura já estava imóvel. Ele então pegou seu terçado e desferiu vários golpes na cobra. Correu para sua casa, alarmado, sem saber se a tinha matado. Lá chegando contou o acontecido ao seu pai, que lhe explicou que a cobra deveria estar convidando-o para tornar-se um rezador. Se ele não quisesse, deveria desculpar-se e fazer algum pedido (para que tivesse força para fazer roçados ou sorte na caça, por exemplo), jamais deveria tê-la machucado. Na mesma noite, Kako sonhou que sofria um acidente. Alguns dias se passaram e o acidente aconteceu. Sozinho pela mata, caçando, Kako tropeçou na raiz de uma árvore, caiu desajeitadamente e a espingarda detonou, acertando seu braço. Socorrido pelos missionários da MNTB, levado para a cidade de Tarauacá, Kako teve o braço direito amputado. A cobra enviara-lhe o castigo.
Não há qualquer problema em se recusar a seguir a carreira de shoitiya, em declinar ao chamado de rono yuxin, mas aqueles que a atacam são vingados. Os Katukina não matam jibóias (mana rono), sucuris e outras cobras de grande porte, pois acreditam que se assim fizerem, terão de volta a vingança da cobra morta que lhes poderá causar a morte ou deficiências físicas irreversíveis.[6]
Aqueles que aceitam de bom-grado o contato sobrenatural e desejam mesmo seguir uma carreira de rezador, devem aprofundar seus conhecimentos seja solitariamente ou com a ajuda de rezadores mais experientes ou ambas as formas ao mesmo tempo, como é mais comum. Se solitariamente, um homem passa a consumir rapé todas as noites, a fim de estimular a ocorrência de sonhos com Rono Yuxin, o espírito da serpente, que o instruí sobre as doenças e os cantos de cura. Na companhia de um rezador mais experiente, o aprendiz consome também rapé e, algumas vezes, ayahuasca[7], e aprende com ele os cantos apropriados para cada doença e também os sintomas que devem ser observados nos paciente. De uma maneira mais informal, um aprendiz pode também acompanhar um rezador mais experiente sempre que este for consultar um paciente.




[1] O tema da cobra como detentora dos conhecimentos xamânicos é recorrente entre os grupos indígenas da família lingüística pano. Entre as etapas para tornar-se xamã entre os Yaminawa peruanos, Townsley (1988:133) menciona que um homem deve comer a língua e os excrementos de uma anaconda (o mais poderoso mestre dos poderes xamânicos). Os Yaminawa da fronteira brasileira dizem que para alçar a condição de xamã, um homem deve, entre outras coisas, “chupar a língua de uma ronoá (sucuri), previamente capturada e embriagada com shori (ayahuasca) (Calávia Saez 1995:107-108). Já os Kaxinawá afirmam que o preparo e as canções do ayahuasca foram aprendidos com a sucuri (Lagrou 1996). Janet Siskind (1973:165-166) observou que entre os Sharanawa um aprendiz de xamã teve seu corpo esfregado com a língua de uma cobra e comeu o coração de uma Boa constrictor.
[2] Empresto a expressão de Viveiros de Castro (1986:446), que a usou para tratar também da relações troca de pele/imortalidade entre os Tupi.
[3] Mas não só o desenho do couro dos boídeos são apreciados, também de algumas cobras peçonhentas que não estão relacionadas ao xamanismo. Certa vez, eu e duas mulheres encontramos uma cobra (que parecia ser uma jararaca) no caminho. Mais tarde, uma das mulheres (que tinha matado a cobra) contou o acontecido para um homem e querendo descrevê-la para que ele pudesse identificá-la, dizia insistentemente: kene roapa kuin, i.e., “desenho muito bonito”.
[4] Em outros grupos pano, há uma estreita associação entre beleza, conhecimento xamânico e visões. Entre os Shipibo-Conibo (Gebhart-Sayer 1986) e os Kaxinawá (Lagrou 1996), as belas visões são expressas nos desenhos geométricos, pelas mulheres, que os elaboram a partir dos cantos dos xamãs. Nos dias de hoje os Katukina parecem ter restringido as elaborações de suas visões aos cantos. De todo modo, os desenhos geométricos talvez tenham existido em maior quantidade no passado, pois são ainda encontrados nas peneiras, peças de cerâmica e nas pinturas corporais.
[5] Montagner Melatti (1985) fala que os xamãs marubo são iniciados após uma doença causada por agentes sobrenaturais. Ela fornece uma pequena biografia dos xamãs que conheceu, e, entre eles, consta que um se tornou xamã após ter visto uma sucuriju (:407) e outro após ser picado por uma surucucu (:415). Entre os Sharanawa, Siskind também menciona o caso de um rapaz que recebeu os ensinamentos para tornar-se xamã após ter sido picado por uma cobra (1973:165)
[6] Entre os Kaxinawá, parentes lingüísticos dos Katukina, a sucuri só é morta para que as mulheres aprendam os desenhos que fazem em objetos (redes, cerâmicas) e no próprio corpo. Eles dizem que matar uma sucuri por qualquer outro motivo seria colocar a vida em risco, pois “a cobra é pajé” (Lagrou 1996:215).
[7] Embora os Katukina digam que podem tomar ayahuasca para estimular “encontros” com Rono yuxin, o mais comum é o uso do rapé. No mais, os rezadores Katukina não usam ayahuasca nas sessões de cura. Parece-me que os romeya usavam o ayahuasca com mais frequência. Segundo Erikson (1993:48), por toda a área pano, o tabaco é mais utilizado como alucinógeno xamânico do que a ayahuasca.

Nenhum comentário:

Postar um comentário