Edilene Coffaci de Lima
Depto de Antropologia/UFPR
Doutoranda no PPGAS/USP
Por que não comer?
A maior parte
dos animais também sofrem restrições de consumo associados ao estado de saúde
das pessoas e ao período de gravidez, que nos interessam diretamente aqui.
Durante a gravidez e enquanto os filhos têm poucos anos de idade, os pais e a
própria criança não devem comer carne de nenhum tipo de macaco, caso contrário
a criança fica agitada e chora muito à noite. Durante todo o período da
gravidez uma mulher deve abster-se de consumir a carne de animais de casco (shakaya), como todas as espécies de
tatu, jabotis e tartarugas, além de arraias e bodes, seres que têm sua morada
debaixo da terra e em paliçadas ou que se remexem na terra, que podem
dificultar o parto. Mulheres menstruadas (imiya)
devem evitar comer o fígado (taka) de
todos os animais, senão há um aumento do fluxo menstrual. Crianças e adultos,
quando gravemente doentes (vopi), não
podem comer a carne de nenhum mamífero, como paca, veado, tatu, porquinho,
queixada, cutia, coatipurus e macacos. As interdições alimentares são
extensivas a seus parentes diretos – pai, mãe, filhos e irmãos – que, como
eles, devem alimentar-se exclusivamente de vegetais, peixes e aves. Após o parto
aplica-se a mesma dieta, por um período aproximado de duas semanas, à mãe e ao
pai da criança recém-nascida. A persistência da doença e, em casos extremos, a
morte freqüentemente são atribuídos ao não cumprimento das restrições
alimentares.
A observação
estrita dos tabus alimentares não diz respeito exclusivamente à capacidade
individual de resistir aos alimentos proibidos. A densa rede de relações de
parentesco e a teoria da concepção nativa interferem também aqui. Começo pela
teoria da concepção.
Como afirmei
anteriormente, durante o período pós-parto, o pai, a mãe e os irmãos da criança
recém-nascida não podem comer a carne de nenhum mamífero. Contudo, a teoria da
concepção nativa diz que a gestação é resultado da troca de fluídos corpóreos
entre homens (sêmen) e mulheres (sangue), através de repetidos intercursos
sexuais. Além disso, admite-se que uma pessoa possa ter mais de um genitor
masculino. Quantos forem os parceiros de uma mulher no período imediatamente
anterior e posterior ao anúncio da gravidez, tantos serão os pais da criança. A
rigor, todos os genitores masculinos têm que seguir a mesma dieta no período
pós-parto, seja ele quem “fez” ou quem “ajudou a fazer” a criança, como os
Katukina costumam dizer.
A proibição de
comer a carne de todos os mamíferos no resguardo pós-parto é relaxada se, dias
após a cicatrização do umbigo, a criança não apresenta qualquer problema de
saúde, em um período variável de 10-20 dias, quando os pais passam a poder
comer quase tudo, com exceção das espécies de macaco e coatipuru.
No que diz
respeito às relações de parentesco, os Katukina dizem que sempre que uma pessoa
adoece, seja uma criança ou um adulto, pai, mãe e irmãos não devem consumir a
carne de qualquer mamífero, tartaruga e jacaré. Formados pelos mesmas substâncias,
entende-se que os distúrbios fisiológicos de um afete, de algum modo, todos os
membros da família elementar e todos têm então que observar a mesma dieta
daquele que está debilitado fisicamente.
O que resulta
no dia-a-dia da aldeia em recados sobre a saúde das pessoas circulando por
todos os lados. Considerando, por exemplo, a virilocalidade atual dos Katukina,
as filhas casadas moram em agrupamentos residenciais distantes de seus parentes
diretos e, no caso de adoecer seriamente, alguém deve imediatamente comunicar a
seus pais e irmãos, para que estes observem a mesma dieta e acompanhem a
progressão de seu estado de saúde. No caso de haver meio-irmãos, o que é
bastante comum, estes também devem ser avisados.
Quando a pessoa
doente tem parentes diretos morando em outra aldeia ou em viagem, a situação
pode adquirir contornos dramáticos. A distância de algum parente que, sem saber
que tinha um familiar doente, comeu alimentos proibidos e contribuiu,
involuntariamente, para agravar seu estado de saúde foi sempre lembrada.
O resguardo
obrigatório entre as pessoas que partilham a mesma substância deve prolongar-se
por toda a vida. Havendo uma pessoa doente, pai, mãe e irmãos devem adotar a
mesma dieta alimentar que ela. Os filhos devem fazer o mesmo em caso de doença
do pai ou da mãe. Entretanto, marido e mulher não fazem resguardo um pelo
outro. Seus filhos foram concebidos pela combinação de suas substâncias, que
são diversas, por isso ambos devem resguardar-se por eles mas não um pelo
outro.
Os tabus alimentares
incidem também sobre alguns dos animais domésticos introduzidos entre os
Katukina após o contato com os brancos. Galinhas e patos são apropriados ao
consumo em qualquer tempo, estejam as pessoas sadias ou enfermas, como ocorre
com as demais aves. Embora o consumo de carne bovina seja pequeno (alguns
katukina não apreciam mesmo o paladar desta carne), diz-se comumente que a
carne de boi (voi) não está sujeita a
qualquer tipo de interdição. Já o consumo de carne de ovelha (txasho) e porco doméstico (hono) é orientado pelas mesmas
interdições previstas para os animais silvestres que citei no início. Neste
ponto é importante observar que o boi é chamado de voi entre os katukina, a troca do b pelo v parece ser
simplesmente uma adequação à fonologia da língua. A ovelha é chamada de txasho, o mesmo termo com o qual
designam o veado, e o porco doméstico é chamado de hono, o mesmo termo utilizado para o porco silvestre. O fato de
ovelha e porco doméstico terem correlatos silvestres parece explicar a interdição
de consumo a que estão sujeitos em casos de doenças, pois são as interdições
previstas para o veado e o porco silvestre na mesma situação.
A ingestão de alimentos proibidos, como temos visto, pode causar o
agravamento do estado de saúde de uma pessoa já enferma ou dificuldades no
parto se uma mulher estiver grávida. Em casos de doença, os Katukina
identificam alguns distúrbios fisiológicos recorrentes de acordo com o animal
ingerido. Assim, temos:
Animal consumido
|
Distúrbios fisiológicos
|
Paca, paca-de-rabo, cotia, tatus, jaboti e jacaré
|
Enrijecimento e dores do abdômen, diarréia e
vômitos
|
Anta, capivara, queixada, porco e veado
|
Salivação, tremores, febre e olhar parado em ponto
fixo
|
Macacos e coatipuru
|
Dor de cabeça, tontura e agitação
|
Paralelamente à interdição do consumo de determinadas carnes em casos de
doença, está a proibição, extensiva ao pai, mãe e irmãos da pessoa doente, de
ter relações sexuais. Em termos ainda preliminares, as proibições de carne e de
sexo, além de sugerirem a equivalência entre sexo e caça tão difundida entre os
grupos amazônicos[1], parece
relacionada à tentativa de interceptar o contato com substâncias alheias ao
pequeno grupo da família nuclear e que estão contidas em secreções do corpo, yorã pae[2],
que, neste caso, tanto pode ser o sêmen como secreções vaginais (e, devo
pensar, também no sangue), já que a atividade sexual é vetada aos homens e
mulheres igualmente. Tudo se passa como se a família elementar tivesse que se
conter em si mesma até a superação do período crítico.
A explicação
para a abstinência de carne de caça nestes casos remete à origem mítica de
todos os animais que vivem na terra e têm quatro patas, como anta, porquinho,
queixada, paca, paca-de-rabo, cutia, cotiara, veado, tatu-canastra, tatu,
coatipurus, macacos. Segundo os Katukina, os animais têm espíritos pois no
passado remoto eles eram seres humanos, que foram transformados em animais por
uma divindade – chamada Koka pino txari.
Para salvá-los do ataque de um gavião gigante – chamado Txai tevo – que iria matar a todos, Koka pino txari, transformou-os em animais, que até então não
existiam na floresta. Os animais, todos eles originados então de seres humanos,[3]
têm espíritos (yuxin), que são mais
fortes do que o espírito que as próprias pessoas têm, no caso delas estarem
debilitadas fisicamente. Por isso uma pessoa doente não deve comer a carne
destes animais, pois o seu próprio espírito, capaz de resistir apenas quando o
corpo está sadio, seria subjugado pelo espírito do animal ingerido. Koka pino txari, na mesma época em que
criou os animais, criou também as aves, após arrancar e assoprar os pelos de
sua perna, fazendo com que surgissem araras, tucanos, nambus, jacamins,
saracuras, entre outros. Mas as aves, diferentemente dos animais citados, não
têm espíritos.
Erikson
(1987:112-113) e Descola (1989:348-362) já mostraram, a partir do exame do
vocabulário de caça em grupos amazônicos, que as relações entre homens e
animais são ordenadas pela aliança; mas uma aliança "trapaceada"
("falsa aliança", segundo Descola), visto que sem contrapartida,
contrária portanto à reciprocidade real entre cunhados humanos. Desta maneira
assimilando as relações entre homens àquelas entre homens e animais. A
assimetria nas relações entre homens e animais é o que explica, em alguns
casos, o envio de doenças dos animais aos homens. Faltam-me dados sobre a caça
katukina para eu possa assumir integralmente a análise desses autores. Em todo
caso, algumas pistas neste sentido estão já indicadas, pois o primeiro nome, Koka, do personagem mítico que criou os
animais, é um termo de parentesco utilizado para afins. Koka é o irmão da mãe, sogro potencial, considerando que os
Katukina apresentam um sistema de parentesco do tipo dravidiano (Lima, 1994).
Para finalizar,
pelo menos por ora, a ancestralidade humana dos animais, parece-me possível
supor, os fazem possuidores de espíritos que, de alguma maneira, interagem e
circulam entre os homens, mas cuja interação e circulação podem resultar no
inverso da caça, i.e., os homens podem ser transformados em presas. Aos xamãs e
rezadores cabe justamente mediar entre homens e animais, definindo seus campos
de interação e também apaziguando eventuais conflitos entre eles.
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Resumo: Estudo
etnográfico das representações simbólicas katukina (pano) das espécies
naturais, a partir de seu sistema xamânico. Serão abordados os contatos sobrenaturais
e sonhos que podem dar início a uma carreira xamânica, os tabus alimentares, a
causação e cura das doenças. Apesar do tema ainda não ter sido abordado com
freqüência na literatura pano, serão ensaiadas algumas comparações com aqueles
já descritos na bibliografia.
[1]
Entre os Katukina sonhos eróticos indicam caça farta, o que replica a
equivalência entre atividade sexual e cinegética.
[2] Pae designa várias secreções de humanos
e animais. Genericamente, saliva e secreções nasais são pae, secreções do olho são wero
pae. Do mesmo modo, o veneno das cobras é chamado de rono pae.
[3] O
que remete diretamente à observação de Viveiros de Castro (1996:118-119) de
que, no pensamento ameríndio, "a
condição original comum não é a animalidade, mas a humanidade. Os humanos
são aqueles que continuaram iguais a si mesmos; os animais são ex-humanos, e
não os humanos ex-animais" (itálicos do autor).
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