quinta-feira, 27 de junho de 2013

OS ANIMAIS NO XAMANISMO KATUKINA - Parte 4

Edilene Coffaci de Lima
Depto de Antropologia/UFPR
Doutoranda no PPGAS/USP

Por que não comer?

A maior parte dos animais também sofrem restrições de consumo associados ao estado de saúde das pessoas e ao período de gravidez, que nos interessam diretamente aqui. Durante a gravidez e enquanto os filhos têm poucos anos de idade, os pais e a própria criança não devem comer carne de nenhum tipo de macaco, caso contrário a criança fica agitada e chora muito à noite. Durante todo o período da gravidez uma mulher deve abster-se de consumir a carne de animais de casco (shakaya), como todas as espécies de tatu, jabotis e tartarugas, além de arraias e bodes, seres que têm sua morada debaixo da terra e em paliçadas ou que se remexem na terra, que podem dificultar o parto. Mulheres menstruadas (imiya) devem evitar comer o fígado (taka) de todos os animais, senão há um aumento do fluxo menstrual. Crianças e adultos, quando gravemente doentes (vopi), não podem comer a carne de nenhum mamífero, como paca, veado, tatu, porquinho, queixada, cutia, coatipurus e macacos. As interdições alimentares são extensivas a seus parentes diretos – pai, mãe, filhos e irmãos – que, como eles, devem alimentar-se exclusivamente de vegetais, peixes e aves. Após o parto aplica-se a mesma dieta, por um período aproximado de duas semanas, à mãe e ao pai da criança recém-nascida. A persistência da doença e, em casos extremos, a morte freqüentemente são atribuídos ao não cumprimento das restrições alimentares.
A observação estrita dos tabus alimentares não diz respeito exclusivamente à capacidade individual de resistir aos alimentos proibidos. A densa rede de relações de parentesco e a teoria da concepção nativa interferem também aqui. Começo pela teoria da concepção.
Como afirmei anteriormente, durante o período pós-parto, o pai, a mãe e os irmãos da criança recém-nascida não podem comer a carne de nenhum mamífero. Contudo, a teoria da concepção nativa diz que a gestação é resultado da troca de fluídos corpóreos entre homens (sêmen) e mulheres (sangue), através de repetidos intercursos sexuais. Além disso, admite-se que uma pessoa possa ter mais de um genitor masculino. Quantos forem os parceiros de uma mulher no período imediatamente anterior e posterior ao anúncio da gravidez, tantos serão os pais da criança. A rigor, todos os genitores masculinos têm que seguir a mesma dieta no período pós-parto, seja ele quem “fez” ou quem “ajudou a fazer” a criança, como os Katukina costumam dizer.
A proibição de comer a carne de todos os mamíferos no resguardo pós-parto é relaxada se, dias após a cicatrização do umbigo, a criança não apresenta qualquer problema de saúde, em um período variável de 10-20 dias, quando os pais passam a poder comer quase tudo, com exceção das espécies de macaco e coatipuru.
No que diz respeito às relações de parentesco, os Katukina dizem que sempre que uma pessoa adoece, seja uma criança ou um adulto, pai, mãe e irmãos não devem consumir a carne de qualquer mamífero, tartaruga e jacaré. Formados pelos mesmas substâncias, entende-se que os distúrbios fisiológicos de um afete, de algum modo, todos os membros da família elementar e todos têm então que observar a mesma dieta daquele que está debilitado fisicamente.
O que resulta no dia-a-dia da aldeia em recados sobre a saúde das pessoas circulando por todos os lados. Considerando, por exemplo, a virilocalidade atual dos Katukina, as filhas casadas moram em agrupamentos residenciais distantes de seus parentes diretos e, no caso de adoecer seriamente, alguém deve imediatamente comunicar a seus pais e irmãos, para que estes observem a mesma dieta e acompanhem a progressão de seu estado de saúde. No caso de haver meio-irmãos, o que é bastante comum, estes também devem ser avisados.
Quando a pessoa doente tem parentes diretos morando em outra aldeia ou em viagem, a situação pode adquirir contornos dramáticos. A distância de algum parente que, sem saber que tinha um familiar doente, comeu alimentos proibidos e contribuiu, involuntariamente, para agravar seu estado de saúde foi sempre lembrada.
O resguardo obrigatório entre as pessoas que partilham a mesma substância deve prolongar-se por toda a vida. Havendo uma pessoa doente, pai, mãe e irmãos devem adotar a mesma dieta alimentar que ela. Os filhos devem fazer o mesmo em caso de doença do pai ou da mãe. Entretanto, marido e mulher não fazem resguardo um pelo outro. Seus filhos foram concebidos pela combinação de suas substâncias, que são diversas, por isso ambos devem resguardar-se por eles mas não um pelo outro.
Os tabus alimentares incidem também sobre alguns dos animais domésticos introduzidos entre os Katukina após o contato com os brancos. Galinhas e patos são apropriados ao consumo em qualquer tempo, estejam as pessoas sadias ou enfermas, como ocorre com as demais aves. Embora o consumo de carne bovina seja pequeno (alguns katukina não apreciam mesmo o paladar desta carne), diz-se comumente que a carne de boi (voi) não está sujeita a qualquer tipo de interdição. Já o consumo de carne de ovelha (txasho) e porco doméstico (hono) é orientado pelas mesmas interdições previstas para os animais silvestres que citei no início. Neste ponto é importante observar que o boi é chamado de voi entre os katukina, a troca do b pelo v parece ser simplesmente uma adequação à fonologia da língua. A ovelha é chamada de txasho, o mesmo termo com o qual designam o veado, e o porco doméstico é chamado de hono, o mesmo termo utilizado para o porco silvestre. O fato de ovelha e porco doméstico terem correlatos silvestres parece explicar a interdição de consumo a que estão sujeitos em casos de doenças, pois são as interdições previstas para o veado e o porco silvestre na mesma situação.
A ingestão de alimentos proibidos, como temos visto, pode causar o agravamento do estado de saúde de uma pessoa já enferma ou dificuldades no parto se uma mulher estiver grávida. Em casos de doença, os Katukina identificam alguns distúrbios fisiológicos recorrentes de acordo com o animal ingerido. Assim, temos:


Animal consumido
Distúrbios fisiológicos
Paca, paca-de-rabo, cotia, tatus, jaboti e jacaré
Enrijecimento e dores do abdômen, diarréia e vômitos
Anta, capivara, queixada, porco e veado
Salivação, tremores, febre e olhar parado em ponto fixo
Macacos e coatipuru
Dor de cabeça, tontura e agitação
Paralelamente à interdição do consumo de determinadas carnes em casos de doença, está a proibição, extensiva ao pai, mãe e irmãos da pessoa doente, de ter relações sexuais. Em termos ainda preliminares, as proibições de carne e de sexo, além de sugerirem a equivalência entre sexo e caça tão difundida entre os grupos amazônicos[1], parece relacionada à tentativa de interceptar o contato com substâncias alheias ao pequeno grupo da família nuclear e que estão contidas em secreções do corpo, yorã pae[2], que, neste caso, tanto pode ser o sêmen como secreções vaginais (e, devo pensar, também no sangue), já que a atividade sexual é vetada aos homens e mulheres igualmente. Tudo se passa como se a família elementar tivesse que se conter em si mesma até a superação do período crítico.
A explicação para a abstinência de carne de caça nestes casos remete à origem mítica de todos os animais que vivem na terra e têm quatro patas, como anta, porquinho, queixada, paca, paca-de-rabo, cutia, cotiara, veado, tatu-canastra, tatu, coatipurus, macacos. Segundo os Katukina, os animais têm espíritos pois no passado remoto eles eram seres humanos, que foram transformados em animais por uma divindade – chamada Koka pino txari. Para salvá-los do ataque de um gavião gigante – chamado Txai tevo – que iria matar a todos, Koka pino txari, transformou-os em animais, que até então não existiam na floresta. Os animais, todos eles originados então de seres humanos,[3] têm espíritos (yuxin), que são mais fortes do que o espírito que as próprias pessoas têm, no caso delas estarem debilitadas fisicamente. Por isso uma pessoa doente não deve comer a carne destes animais, pois o seu próprio espírito, capaz de resistir apenas quando o corpo está sadio, seria subjugado pelo espírito do animal ingerido. Koka pino txari, na mesma época em que criou os animais, criou também as aves, após arrancar e assoprar os pelos de sua perna, fazendo com que surgissem araras, tucanos, nambus, jacamins, saracuras, entre outros. Mas as aves, diferentemente dos animais citados, não têm espíritos.
Erikson (1987:112-113) e Descola (1989:348-362) já mostraram, a partir do exame do vocabulário de caça em grupos amazônicos, que as relações entre homens e animais são ordenadas pela aliança; mas uma aliança "trapaceada" ("falsa aliança", segundo Descola), visto que sem contrapartida, contrária portanto à reciprocidade real entre cunhados humanos. Desta maneira assimilando as relações entre homens àquelas entre homens e animais. A assimetria nas relações entre homens e animais é o que explica, em alguns casos, o envio de doenças dos animais aos homens. Faltam-me dados sobre a caça katukina para eu possa assumir integralmente a análise desses autores. Em todo caso, algumas pistas neste sentido estão já indicadas, pois o primeiro nome, Koka, do personagem mítico que criou os animais, é um termo de parentesco utilizado para afins. Koka é o irmão da mãe, sogro potencial, considerando que os Katukina apresentam um sistema de parentesco do tipo dravidiano (Lima, 1994).
Para finalizar, pelo menos por ora, a ancestralidade humana dos animais, parece-me possível supor, os fazem possuidores de espíritos que, de alguma maneira, interagem e circulam entre os homens, mas cuja interação e circulação podem resultar no inverso da caça, i.e., os homens podem ser transformados em presas. Aos xamãs e rezadores cabe justamente mediar entre homens e animais, definindo seus campos de interação e também apaziguando eventuais conflitos entre eles.

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Resumo: Estudo etnográfico das representações simbólicas katukina (pano) das espécies naturais, a partir de seu sistema xamânico. Serão abordados os contatos sobrenaturais e sonhos que podem dar início a uma carreira xamânica, os tabus alimentares, a causação e cura das doenças. Apesar do tema ainda não ter sido abordado com freqüência na literatura pano, serão ensaiadas algumas comparações com aqueles já descritos na bibliografia.




[1] Entre os Katukina sonhos eróticos indicam caça farta, o que replica a equivalência entre atividade sexual e cinegética.
[2] Pae designa várias secreções de humanos e animais. Genericamente, saliva e secreções nasais são pae, secreções do olho são wero pae. Do mesmo modo, o veneno das cobras é chamado de rono pae.
[3] O que remete diretamente à observação de Viveiros de Castro (1996:118-119) de que, no pensamento ameríndio, "a condição original comum não é a animalidade, mas a humanidade. Os humanos são aqueles que continuaram iguais a si mesmos; os animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais" (itálicos do autor).

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